Em 2006 T.M. participou de uma viagem com um grupo de alunos de uma universidade carioca. Os professores seguiram em uma Kombi, e mais atrás foi um ônibus com 52 alunos. Lá dentro, alguns estudantes começaram a beber e fumar, causando um verdadeiro rebuliço. “Não aguentei, falei um monte de desaforos, segurei no bagageiro e aumentei muito a voz”, contou. “O pessoal se assustou, eles não esperavam uma reação minha daquelas. Foi fora do meu comum, eu jamais faria isso. Não teria uma reação explosiva do jeito que eu tive.”
A reação “fora do comum” relatada pelo estudante provavelmente não teria ocorrido caso ele não sofresse do transtorno afetivo bipolar, um conjunto de sinais e sintomas que podem durar semanas ou meses e que causa o estado do humor a variar de maneira periódica ou cíclica apresentando-se de forma normal, elevada — chamada de mania — ou deprimida.
Ao longo da vida, as pessoas apresentam estados de humor variados, mas ainda se sentem no controle. No transtorno afetivo bipolar, no entanto, essa sensação de controle é perdida, gerando muito sofrimento para os que convivem com o problema.
Até os anos 80, o transtorno bipolar era conhecido como psicose maníaco-depressiva. A partir daí passou a ser chamada de transtorno afetivo bipolar, uma síndrome que acomete, segundo estimativas, 1% da população mundial e de 1,8 a 15 milhões de brasileiros, nas suas mais diversas formas de apresentação.
O médico e professor de Psiquiatria da Universidade de São Paulo, Valentim Gentil Filho, em entrevista ao Dr. Dráuzio Varella, afirma que a síndrome mudou de nome porque analisando separadamente, a denominação antiga carregava uma carga negativa, estigmatizada.
“Maníaco [de psicose maníaco-depressiva] é um termo técnico derivado do grego e significa loucura. De fato, na fase de hiperexcitabilidade, o indivíduo é o estereótipo do louco já que suas atitudes destoam, e muito, do padrão normal de seu comportamento. Depressivo era o termo mais brando dos três e que menos impacto causava. Por isso, considerou-se que a expressão psicose maníaco-depressiva era pesada demais para designar uma doença que, de certa forma, não era tão terrível quanto o nome fazia supor”.
Para o psiquiatra e pesquisador Diogo Lara, em seu livro Temperamento Forte e Bipolaridade: dominando os altos e baixos do humor (ed. Revolução das Idéias), o humor bipolar poderia ser comparado a ter um par de patins: “em alguns lugares é difícil de caminhar, em outros anda-se muito mais rápido do que quem está sem eles. Quanto menor o controle maior a emoção!” Desta forma, para aqueles que conhecem bem os seus patins — aprendendo a minimizar os riscos e andando em terrenos mais favoráveis — tê-los pode até ter suas vantagens.
Altos e baixos
O termo bipolar expressa os dois pólos de humor: o da mania e o da depressão. Diferente de como muitas pessoas utilizam, equivocadamente, a palavra mania — como mania de limpeza, de conferir as coisas, ou até maníaco no sentido de assassino, psicopata — o termo médico é descrito de outra forma. Um episódio maníaco é descrito por Benjamin e Virginia Sadock, autores do livro Compêndio de Psiquiatria, como um determinado período de humor fora do normal e persistentemente elevado, expansivo ou irritável.
Aquele que passa por uma crise de mania costuma falar muito, falar rápido, ter idéias de grandeza, se sentir muito poderoso, capaz, inteligente, bonito, rico, gastar de maneira desmedida, se sentir com mais energia que o normal e a sua libido tende a aumentar. O doutorando T. M., de 27 anos, foi diagnosticado como bipolar em 2007. Ele se descontrolava com seus gastos durante as crises maníacas. “Gosto muito de ler, mas acabava comprando uma quantidade de livros que eu não conseguia dar conta. Depois que eu comecei a me tratar, os excessos diminuíram bastante.”
O recém-formado administrador de empresas F. F., de 24 anos, já passou por crises de mania em que ficava tão cheio de energia que passava noites sem dormir. “Eu já fiquei sete dias sem dormir no período de mania. A coisa que eu mais queria era dormir, mas não conseguia. Posso querer ficar um, dois dias assim, mas sete não. Eu já não agüentava mais, estava ficando pirado.”
Assim como F. F, durante essas crises de humor “para cima”, muitos bipolares passam a dormir menos horas por noite e não ficam cansados. Além disso, emendam um assunto no outro — mesmo sendo capazes de manter uma coerência lógica. Costumam ficar muito desinibidos, perdendo a noção crítica do que é aceitável para cada situação, fazendo besteiras e achando tudo normal. É como se o bipolar estivesse em pleno carnaval, se divertindo e brincando com todos, mas de maneira, muitas vezes, inadequada.
No outro pólo do humor, durante as crises de depressão, as pessoas costumam ter idéias negativas, de ruína, sentem-se tristes e com energia baixa. Atividades simples e cotidianas, como tomar banho e escovar os dentes, podem até ser deixadas de lado. A perda do apetite é comum, mas às vezes pode-se ganhar mais peso. O indivíduo fica mais lento, sem vontade de sair da cama, e costuma ter dificuldades de concentração. Em casos mais graves, pode pensar em cometer suicídio, chegando até as últimas conseqüências.
Segundo a psiquiatra Magda Vaissman, a depressão é uma das maiores causas de suicídio e afastamento do trabalho, trazendo enormes prejuízos pessoais. “No caso de álcool e drogas, a maior parte dos pacientes, eu diria que 60% ou 70% dos pacientes, têm um transtorno afetivo associado”.
Estimativas publicadas no site da Associação Brasileira de Transtornos Bipolares apontam que até 50% dos portadores tentem o suicídio ao menos uma vez em suas vidas, enquanto cerca de 15% efetivamente o cometem. Trata-se, portanto, de um transtorno grave que não só pode incapacitar o indivíduo — que não conseguirá levar uma vida normal de trabalho ou social –, mas que também põe em risco a própria vida.
Os principais tipos da doença
Para entender um pouco mais sobre o transtorno afetivo bipolar, é preciso saber como a doença é classificada. De acordo com a classificação do livro Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM), um dos parâmetros utilizados pelos médicos, os transtornos bipolares são enquadrados em tipo I e tipo II.
O tipo I é aquele em que o paciente apresenta os quadros clássicos de mania e depressão, podendo um ser mais freqüente do que o outro. Em geral, as crises depressivas são mais freqüentes e ocorrem por períodos mais longos do que as crises maníacas. Estima-se que cerca de 1% da população mundial seja bipolar do tipo I. O tipo II — manifestado por 6 a 8% das pessoas — ocorre quando existem crises depressivas e crises de mania mais leves, chamadas de hipomania.
Essas alterações leves de humor eufórico são geralmente de difícil diagnóstico e podem não ser detectadas pelo médico. “Como é um quadro mais leve e não causa problema nenhum, o indivíduo fica mais ativo. Na verdade, ele fica melhor e todo mundo gosta”, diz o Dr. Elie Cheniaux. O paciente costuma trabalhar melhor, por mais tempo, e pensa de maneira mais criativa. Na vida pessoal, costuma ser mais fácil conhecer novas pessoas, pois ele tende a se tornar mais sociável.
E é aí que mora o perigo. O bipolar, em crise de mania, pode nem chegar ao médico por considerar positivo aquele tipo de humor ou por achar que episódios como aqueles são perfeitamente normais. Por isso, as crises de mania leve podem não ser relatadas pelo paciente ou não ser detectadas pelo especialista. A depressão é mais facilmente diagnosticada, por outro lado. Esta dificuldade pode ser refletida no tratamento, já que antidepressivos podem desencadear a mania no paciente bipolar.
Conheça as áreas afetadas no cérebro de um bipolar e o que os cientistas estão começando a descobrir:
Como atua
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O que ocorre
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1 – Estriato
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Ajuda o cérebro aprocessar recompensas
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Perda de 30% da massa cinzenta na região. Isso interfere na capacidade de julgamento. A pessoa pode gastar demais, por exemplo
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2 – Córtex pré-frontal
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Regula as emoções, a capacidade de planejamento e a motivação
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Até 40% de redução da massa cinzenta. A pessoa tem dificuldades para desenvolver uma atividade constante
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3 – Amígdala
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Ajuda a reconhecerexpressões faciais. As transmissões entre os neurônios aumentam em resposta aos estímulos emocionais
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Lentidão na resposta aos estímulos, reações fora do tempo normal
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4 – Hipocampo
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É um dos centros da memória. Parte dele ajuda no reconhecimento de perigos ou recompensas
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Ansiedade constante e dificuldade para diferenciar situações seguras das de risco
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5 – Tronco cerebral
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Onde o neurotransmissor serotonina é produzidopara ser espalhado pelas diferentes partes de cérebro
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Bipolares têm menos serotonina, o que pode contribuir para a atrofia dos neurônios e levar à depressão
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Principais causas
Como para a maioria dos transtornos mentais, o componente genético desempenha um dos papéis mais importantes no desenvolvimento do transtorno afetivo bipolar. Segundo dados do livro Temperamento Forte e Bipolaridade: dominando os altos e baixos do humor, há uma chance razoável de um pai e uma mãe bipolares terem filhos com as mesmas características. No caso de um par de gêmeos idênticos, se um deles tem o transtorno afetivo bipolar, há 80% de chances de que o outro também o tenha. Por isso, uma avaliação psiquiátrica completa não pode deixar de levar em conta a história familiar do paciente.
F.F. conta que seu avô tinha o mesmo transtorno que ele descobriu ter na infância. “Ele era Procurador Geral da República e ganhava bastante dinheiro, só que torrava tudo. Ele nunca teve uma vida estável, muito pelo contrário.”
Além do componente genético, acontecimentos da vida podem ajudar a desencadear as crises. Em geral é muito comum ocorrer algum episódio ruim, alguma ocorrência de estresse. Depois da primeira crise, passa a ser menos freqüente que um evento seja o causador destas crises.
Apesar de ser uma doença cujos sintomas sejam bem definidos, ainda se sabe muito pouco sobre as suas causas. Os casos típicos são simples porque não se tratam de meras flutuações do humor, de sentimentos de alegria ou tristeza. “Existe todo um conjunto de alterações em que o individuo fica muito diferente do normal, o leigo percebe que ele não está normal, embora possa não saber o nome da doença”, alerta o Dr. Elie Cheniaux.
Tratamento
Apesar de se tratar de um transtorno que pode causar graves alterações no humor do bipolar, afetando a sua vida diretamente, a boa notícia é que existe tratamento eficaz. O objetivo principal do especialista é tentar reduzir os fatores que desestabilizam o humor do paciente, embora a doença não tenha cura. O acompanhamento farmacológico deve ser feito por toda a vida.
O lítio é um dos primeiros medicamentos que surgiram e ainda é uma dos mais usados como estabilizador de humor — embora funcione melhor na prevenção de crises maníacas do que para crises depressivas. Como qualquer medicamento, o lítio também pode causar efeitos colaterais. A.L., de 28 anos, teve sucesso com este medicamento, mas sentiu seus efeitos negativos: “No meu caso, o lítio foi o estabilizador de humor que mais funcionou, porém os efeitos colaterais foram bem ruins”. Ela conta que a sua pele ficou mais ressecada, teve queda de cabelo — e perda de brilho — e aumento de peso. “Eu bebia muita água também, já que a sensação de sede é constante”.
Alguns antipsicóticos — usados para tratar esquizofrenia e outros quadros psicóticos — e anticonvusivantes funcionam, embora não se saiba exatamente o motivo.
Tratar a depressão bipolar é mais complicado do que tratar a depressão unipolar — que ocorre sem que existam episódios de mania –, já que ela é muito menos estudada. Existe um grande risco de o depressivo bipolar mudar para a mania. “Os antidepressivos favorecem isso, pois o paciente melhora, melhora, melhora tanto que vai para a outra crise”, ressalta o Dr. Elie Cheniaux. Surge, então, uma polêmica: antidepressivos devem ou não ser usados no tratamento da depressão bipolar? Alguns médicos apóiam a sua indicação, com muita cautela, enquanto outros são totalmente contra.
Acima de tudo, o tratamento contra a depressão é extremamente importante porque o bipolar costuma permanecer mais tempo em depressão do que em mania. Em casos de episódios mistos — em que o bipolar apresenta características tanto de mania quanto de depressão –, o risco de suicídio aumenta ainda mais. Isso porque a tristeza e a desesperança, que fazem o indivíduo ter vontade de morrer, são sinais típicos da depressão. No entanto, o indivíduo não se mata porque ele se sente tão desprovido de energia que não tem sequer forças para levar a cabo o seu desejo. No episódio misto, então, ele pode manter essa desesperança, mas tem forças suficientes para tentar se matar.
Como ajudar?
Ainda que para a maioria das pessoas que estejam vendo de fora seja difícil entender o que está acontecendo com um bipolar, a ajuda de amigos e familiares é fundamental. “Quem está de fora pode ajudar com mais sucesso oferecendo apoio, compreensão e disponibilidade para atenuar os prejuízos do momento”, afirma o Dr. Diogo Lara. Ele ressalta em seu livro que muitas vezes é um familiar que toma a decisão de procurar ajuda especializada, já que o doente não tem energia, pode negar a necessidade de tratamento ou porque teme ir a um psiquiatra ou psicólogo.
Existem casos, no entanto, em que a própria família do paciente tem dificuldade de entender e encarar a doença, daí a importância de se informar da melhor maneira possível. Há aqueles que chegam a achar que a depressão não é nada mais que preguiça, e a mania, “falta de vergonha na cara”. Isso porque, para grande parte das pessoas, as enfermidades mentais não são consideradas doenças e porque ainda há um estigma por trás do tratamento psiquiátrico.
Criatividade
Embora existam alguns estudos acerca deste tema, não há comprovação de que haja uma relação direta entre a criatividade e o transtorno bipolar. Mesmo assim, uma rápida busca pela internet nos revela uma lista enorme de personalidades famosas — e extremamente criativas — que foram diagnosticadas ou que se aponte como sendo bipolares: Kurt Cobain, Vincent Van Gogh, Janis Joplin, Elizabeth Taylor, Edgar Allen Poe, Ulysses Guimarães, Leon Tolstoy, Jackson Pollock, Mozart, Virginia Woolf, Winston Churchill…
Para a Dra. Magda Vaissman, uma teoria para responder a esta dúvida poderia ser o fato de que muitas pessoas que sofrem do transtorno afetivo bipolar são extremamente sensíveis. “Elas vêem a vida de uma maneira colorida demais, por extremos. Isso provoca reflexões nas pessoas e a produção artística está relacionada aisso.”
O bipolar Thiago Marinho ressalta o lado negativo que existe por trás de um falso “glamour” conferido ao transtorno. Muitos adolescentes, que têm como ídolos roqueiros como Kurt Cobain (foto), Axl Rose, entre outros, acabam querendo incorporar aquela atitude do ídolo, associada às pretensas características de um bipolar. “Não gosto desse glamour que estão dando para o transtorno bipolar, não é brincadeira.”
Apesar da gravidade da doença, é necessário repetir que um bipolar pode, sim, levar uma vida normal como qualquer outra pessoa, desde que seja bem assessorado por profissionais qualificados.
* Gostaria de agradecer a ajuda e o material fornecido pela psiquiatra Cloyra Almeida, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, para a execução da matéria.
Fonte: http://opiniaoenoticia.com.br/vida/saude/entre-os-dois-polos-do-humor/
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