domingo, 19 de agosto de 2012

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sábado, 11 de agosto de 2012

ARTE E PSICANÁLISE: ENTRE DESMONTAGENS E REARTICULAÇÕES

“Há um grande silêncio dentro de mim. E esse silêncio tem sido a fonte de minhas palavras.”
(CLARICE LISPECTOR, In: Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres).

Não é de hoje que se procura encontrar conexões entre Arte e Psicanálise: já Freud, em seus estudos e escritos, estabeleceu relações entre obra de arte e psicanálise, em se tratando de desmontar e recriar mundos e sentidos. Tania Rivera, no texto “Gesto analítico, ato criador. Duchamp com Lacan”, afirma que “a psicanálise não se debruça sobre a arte como um terreno onde aplicar suas teorias, mas em busca de uma verdade sobre o homem de que as obras literárias e artísticas se aproximariam mais do que a ciência”. A arte, por sua vez, “não procura na psicanálise explicações ou interpretações”, mas talvez uma possa buscar na outra, explorando suas ressonâncias singulares no questionamento contemporâneo sobre o sujeito.(1) Pensando sobre estas conexões, escrevo este texto, no intuito de comparar, aproximar e entrelaçar alguns aspectos destas áreas do conhecimento, tentando apontar para a importância das desmontagens e rearticulações de verdades, signos, idéias e estruturas, propiciadas ao sujeito, pelas práticas da psicanálise e da invenção artística.
No texto “Escritores Criativos e Devaneios” (1908), (2) Freud compreende a obra de arte como substituto do brincar infantil, aproximando o artista ou escritor criativo à criança que, brincando, “cria um mundo próprio reajustando seus elementos de uma forma que lhe agrade, mantendo... uma nítida separação entre seu mundo de fantasia e a realidade”, nos lembra a psicanalista Giovanna Bartucci . No entanto, em “Além do princípio do prazer”, ensaio de Freud de 1920, que termina por estabelecer o conhecido dualismo entre pulsões de vida e pulsões de morte, será essa pulsão de morte, uma vez que não se articula no registro da linguagem, que imporá ao sujeito a necessidade de inscrição no registro da simbolização. A autora observa ainda que, a partir da “necessidade de produzir novos objetos para os circuitos pulsionais, o sujeito realiza rupturas no campo de objetos e símbolos, na visão de mundo constituída, e será exatamente isto que permitirá ao sujeito constituir, construir sua própria realidade de acordo com as leis que eventualmente conheça.” (3)
Esta possibilidade de romper com o óbvio e promover a desestagnação e rearticulação dos sentidos, que tanto acontece na criação artística quanto na prática da psicanálise, parece-me estar relacionada ao que diz Roberto Harari, em Por que Não Há Relação Sexual?, quando aponta a importância de “tentar fazer perceber de modo diferente das associações habituais, mas como algo insólito”, ao discorrer sobre a estranheza e estranhamento, (ostranenie), provocados às vezes pelas obras de arte, e também pelas intervenções analíticas. (4)
Neste livro, Roberto Harari, citando Lacan, lembra que “o intervalo é uma função vigente na direção da cura, de acordo com uma operação regida pela pulsão de morte”. Nesta operação, não se trata de “encher o analisante com novos signos”, diz Harari, mas “sim de confrontar o sem-sentido com a dimensão do vazio”, lembrando que o analista trabalha para promover uma “desconstrução egóica-sígnica”, e afirma ainda que “tanto no discurso literário como no analítico são cruciais os momentos de rareamento, de estranhamento, provocados pela aparição súbita de um significante de efeito inesperado”. (5)
Ainda no livro Por que Não Há Relação Sexual?, Roberto Harari recorre ao conceito de intervalo, e “condição intervalar”, apresentados na obra El Intervalo Perdido, do teórico contemporâneo de arte, o italiano Gillo Dorfles, para falar sobre a importância deste “tempo de separação entre elementos”, e relacionar as idéias de Dorfles à prática da psicanálise. Segundo Dorfles, teria acontecido um desaparecimento dos “intervalos” ou da “condição intervalar”, a partir da modernidade, o que poderia ser relacionado ao “horror vacui” presente em vários âmbitos da cultura e civilização contemporâneas. O italiano Dorfles observa a importância destes “espaços intervalares” em todas as manifestações artísticas e literárias, ao longo da história humana, e de sua ligação com o inacabamento, a fragmentaridade, o silêncio, o estranhamento...(6) Esse aspecto de separação, pausa, interrupção, capaz de fazer ressaltar determinados elementos – não só no terreno artístico – evocado por Dorfles e citado por Harari, ou seja, o conceito de “intervalo”, usado pelo teórico italiano, pode ser relacionado também à prática psicanalítica, onde os “procedimentos intervalares” permitem que o analista introduza diastemas (intervalos) inesperados que convocam à estranheza... “...um golpe do real”, capaz de provocar a “des-localização” do sujeito. Seria esta intervenção algo como um “corte”, através do qual pode emergir um plus, e acontecer alguma transformação.(7)
Giovanna Bartucci , ainda escrevendo sobre as relações entre arte e psicanálise, observa que o jogo de palavras não é mero artifício retórico, mas uma tentativa de recolher, dar forma e instaurar algum sentido para este tempo, que para além (ou aquém) da linguagem, é ele mesmo um tempo necessário, “um tempo que permite a emergência de um sujeito a partir deste corte, desta fenda, deste rombo, desta cratera, desta violência amorosa e necessária” que nós humanos denominamos falta. Assim, diz ela, é que “tanto a experiência psicanalítica, concebida como lugar psíquico de constituição de subjetividade” .... “quanto a arte, encontram na inscrição da pulsão no registro da simbolização e sua reordenação do circuito pulsional uma economia outra que possibilite o trabalho de criação, produção e ligação de sentidos, para “aqueles sujeitos cujos destinos como sujeitos será sempre o de um projeto inacabado, produzindo-se de maneira interminável”.(8)

Penso que podemos aproximar e entrelaçar estas idéias com as de Harari, bem como a noção de “intervalo” usada por Dorfles, a outros conceitos ligados à arte, literatura e psicanálise, uma vez que parecem evocar ou convergir para a “falta”, a “castração” necessária para que o sujeito possa emergir como desejante. A noção de “intervalo” como um “espaço vazio”, de pausa, silêncio, corte, abertura, parece dialogar também com as idéias de Michel Foucault e Maurice Blanchot sobre a linguagem e a arte, quando se trata de pensar neste espaço como o lugar do vazio, da morte, do nonsense, do neutro, do silêncio, da desaparição, mas, também, como possibilitador de movimento, de emergência e rearticulações de verdades e sentidos, de abertura para a reinvenção incessante do sujeito, a partir do encontro impactante com o “real”.
O texto “O pensamento do exterior”, escrito em 1966 por Michel Foucault, aborda o espaço vazio da linguagem, e fala sobre uma “experiência do fora”, que seria a abertura de um espaço neutro, onde a linguagem se escoa sem se configurar e sem nada configurar, oscilando entre o fora da origem e da morte, infinitamente a se repetir, sempre a recomeçar. Lúcia Oliveira Santos, em seu texto “O Ser da Linguagem, a Escritura e a Morte”, tece relações e encontra ressonâncias entre idéias de Blanchot e Foucault, observando que “é neste espaço – o espaço literário onde o sujeito se desfaz, o mundo é suprimido, o ser se dissimula, a obra tende à sua desaparição – que se dá a experiência da linguagem como escritura.” Esta autora lembra que neste texto de Foucault, uma homenagem do mesmo a Blanchot, aparecem estas idéias sobre a linguagem em sua relação com a morte, e a constituição do espaço literário como o “espaço neutro e vazio da linguagem”. (9)
No livro As palavras e as coisas , Foucault lembra que a linguagem moderna não remete nem a Deus nem ao homem, mas ao espaço vazio que é ela própria e, retomando idéias de Blanchot, diz que a literatura se dá como experiência da morte, do pensamento impensável (e na sua presença inacessível), como experiência da finitude...(10) Lúcia Oliveira Santos observa ainda que, tanto para Blanchot quanto para Foucault, a literatura não representa o mundo nem cria nele, mas o faz desaparecer, pois ela só existe a partir desta ausência, do vazio e do rumor que ainda perduram após o homem se dar conta do nada e da morte.(11) E, deste espaço neutro e vazio, onde se afirma a impossibilidade e a ausência de sentido, a desaparição das coisas e daquele que escreve, onde o escrever deixa de se abrigar num horizonte estável para ser tornar atividade de ruína, surge a escritura, a arte, a possibilidade de desmontagens e rearticulações incessantes de sentidos, a partir do encontro com o vazio que permite as reconstruções.
No conto “Amor”, em Laços de Família, de Clarice Lispector (12), como em outros textos clariceanos, podemos encontrar estas “aberturas” para um “espaço vazio”, silencioso e informe, indomesticável, que lembra o espaço neutro abordado por Blanchot. A escritura clariceana abre a brecha por onde vaza esta sensação de plenitude do não-sentido, permitindo a passagem tanto de personagens quanto de leitores para o estranho existente sob a crosta do cotidiano banal. Segundo Nádia B. Gotlib, em Clarice Lispector o exercício da linguagem funciona como exercício de “nomear o não-nomeável, e instrumento de “tocar no ponto que não é tocável(13). E, segundo Benedito Nunes, percebe-se nas obras clariceanas a tentativa de “dizer a coisa sem nome, descortinada no instante do êxtase, e que se entremostra no silêncio intervalar das palavras” : o sentido do real só é atingido quando a linguagem fracassa em dizê-lo.(14)
No conto “Amor”, de Lispector, a protagonista sente-se perturbada e estranha ao estar sozinha em casa, na “hora perigosa da tarde”, quando percebe em si o que chama de “desordem íntima”(15). Sua saída da rotina, quando resolve dar uma volta, acaba provocando uma espécie de ruptura em seu percurso, ou um desvio de sua rota banal, quando uma série de pequenos acontecimentos, aparentemente insignificantes, provocam nela certa perturbação e estranhamento, como o riso e o olhar do cego, que não a vê, o pacote de ovos quebrados, o chacoalhar do bonde, o passeio pelo Jardim Botânico, o encontro com os bichos, o silêncio, o cheiro de vida e de morte... É neste contexto que parece abrir-se uma fenda em seu cotidiano domesticado e banal, e algo aparece, algo inumano, incapturável, ao mesmo tempo assustador e fascinante. E, nestes pequenos desvios de rota, nestes acontecimentos que interrompem a linearidade de seu cotidiano ordenado - nestes intervalos, cortes, aberturas - surgem as sensações conflituosas do ser, entre fascínio e horror, diante do mistério do amor, da vida, da morte e do vazio.


Estas fendas no cotidiano da personagem clariceana fazem pensar nos intervalos, espaços vazios, já mencionados nos textos teóricos de Roberto Harari, e outros citados até aqui. Neste ponto, poderíamos arriscar uma aproximação entre o conceito de “intervalo” trabalhado por Dorfles, o teórico das artes, evocado pelo psicanalista Harari, ao conceito de “espaço vazio e neutro” desenvolvido por Maurice Blanchot, ao referir-se à literatura. Este espaço neutro, este intervalo, também pode ser entendido ou visto como uma abertura, uma “porta de passagem”, para usar palavras do próprio Blanchot, sendo que a mesma possibilitaria o encontro ou vislumbre do vazio, do horror do real. Segundo Blanchot, a linguagem está sempre pronta a passar do “tudo ao nada”, nos lembrando da dissolução. Já a teórica Júlia Kristeva, autora de Sol Negro, depressão e melancolia, afirma que as “construções ficcionais dão testemunho do hiato, branco ou intervalo que é a morte para o inconsciente.”(16) Lacan, por sua vez, no Seminário, livro 7, fala da “Coisa” fundadora do desejo, do vazio no centro do real, da falta comum a todos, de Das Ding, que escapa à significação e é indizível... (17)
No texto Água Viva, Clarice Lispector escreve: “Ouve-me, ouve meu silêncio. O que falo nunca é o que falo e sim outra coisa.”... “Capta esta outra coisa que na verdade falo porque eu mesma não posso. Lê a energia que está no meu silêncio. Ah, tenho medo de Deus e do meu silêncio.”(18) Retomando as noções trazidas até aqui, do intervalo entendido como espaço vazio, neutro, de silêncio e ruptura, de dissolução e morte, abertura, podemos pensar neste eco e oco silencioso das palavras, da escrita, da fala, como o próprio eco do vazio, como um lugar de incerteza onde se desmontam as verdades do eu, do sujeito condicionado em seus comportamentos repetitivos e rígidos. Todavia, é a partir do próprio confronto com o nada, com o vazio, num momento de corte e intervalo, que pode acontecer a desmontagem da repetição, a interrupção da fixidez, tanto através da prática da psicanálise, quanto do fazer artístico.
Segundo Lacan, a arte caracteriza-se por um certo modo de organização em torno do vazio, e tem como combustível esse vazio. Sandra Autuori, em seu texto “LACAN E A ARTE: catando migalhas”, lembra que, antes do que é escrito pelo autor, o que se tem é um papel vazio; do pintor, uma tela em branco, do escultor um nada. Há um nada antes da criação artística. Um nada que incomoda, que pulsa e insiste. Porém, quando a obra acaba, vira um resto, algo que não deu conta de dizer a que veio, e continua sempre faltando algo, o que parece levar o artista a nunca parar de criar, sempre outras obras. De acordo com Lacan, o objeto artístico “é instaurado numa certa relação com a Coisa que é feita simultaneamente para cingir, para presentificar e para ausentificar”. A arte presentifica a ausência, expõe a falta, é o resto exposto que faz restar.(19)

Em Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, Clarice Lispector diz: “Nós, os que escrevemos, temos na palavra humana, escrita ou falada, grande mistério que não quero desvendar com meu raciocínio que é frio. Tenho que não indagar do mistério para não trair o milagre. Quem escreve ou pinta ou ensina ou dança ou faz cálculos em termos de matemática, faz milagre todos os dias.” (20) E, em seu livro O Prazer do Texto, Roland Barthes escreve: “Texto quer dizer tecido; mas enquanto até aqui esse tecido foi sempre tomado por um produto, por um véu acabado por trás do qual se conserva, mais ou menos escondido, o sentido (a verdade), nós acentuamos agora, no tecido, a idéia generativa de que o texto se faz, se trabalha através de um entrelaçamento perpétuo; perdido neste tecido — nessa textura — o sujeito desfaz-se, como uma aranha que se dissolve a si própria nas secreções construtivas de suas teias”. (21)
Sandra Autuori lembra que, para Lacan, o belo é o último véu que nos protege do real. É um ponto de transposição. Porém, mesmo sendo uma última rede de proteção ao real, há uma exposição a ele e, portanto, o belo na arte sustenta o desejo, ao provocar enternecimento. A arte produz um efeito de regozijo em quem a olha. Este é um efeito singular no sujeito, efeito indizível, intraduzível, intransmissível em totalidade e que, por isso mesmo, comporta o furo do real.(22) Contudo, como aponta Xavier G. Ponce, a arte pode ir além do belo, e alcançar o sublime, um termo literário associado ao êxtase e à criação poética. O sublime, além de encantar, como o belo, pode ligar-se ao além do princípio do prazer, quando acontece uma experiência de dilaceração, criando assim um contraponto entre o encanto e o horror provocados pela obra de arte. Ponce descreve o advento da arte moderna como sendo o de instalar uma tensão entre a experiência de satisfação através do belo que encanta e a comoção proporcionada pela experiência do sublime. (23) Vários autores já sublinharam que a arte do século XX e a psicanálise, por terem nascido na mesma época, compartilham um mesmo “espírito”, que dividiu o sujeito definitivamente, porém, Ponce vai além disso ao propor que, com o divórcio entre a imagem e o sentido que ocorre na arte moderna, há uma quebra entre a obra de arte, o artista e o espectador, que é olhado pelo objeto artístico, sem que possa lançar mão de um sentido protetor.
Neste ponto, podemos pensar neste estranhamento provocado pela arte, bem como pelas intervenções psicanalíticas, como algo que provoca uma fratura ou o estilhaçamento do eu, a ruptura que permite a emergência do sujeito do desejo, ao propiciar a saída da fixidez do circuito pulsional, promovendo movimento e circulação do desejo, ao instigar o sujeito a produzir algo que o salve do abismo, sejam novas ligações de significantes, sejam rearticulações de sentido, através do rearranjo de seus pedaços e restos, de elos que possam sustentar sua frágil estrutura psíquica, e seu desejo. Assim, arte e psicanálise estão a serviço desta desmontagem do eu, ao mesmo tempo em que, por meio de seus cortes, abrem brechas, fissuras, pequenas fendas para o encontro do sujeito com o real, com das Ding, com o indizível, promovendo as sacudidelas necessárias à reinvenção constante de si e de suas verdades e percursos.
Na fase final do ensino lacaniano, a arte é entendida como quarto elo, ou seja, como algo que possibilita a amarração entre os outros elos do nó borromeano: o imaginário, o simbólico e o real. No Seminário 23, O Sinthoma, Lacan demonstra a importância de que um quarto laço venha realizar a função de manter o enlace entre os registros, como também delimitar a necessária distinção entre eles. De acordo com Lacan, este quarto elo, a arte, evitaria que o sujeito se perdesse no delírio psicótico, na invasão do imaginário. A partir do estudo da escrita de Joyce, Lacan fica “embaraçado” ao perceber que o escritor trabalhava diretamente no real da letra, a partir de novos sentidos que eram construídos, mesmo não sendo estes muito compartilháveis, e deste trabalho, extraía seu gôzo. (24) Neste caso, Lacan observa que foi a obra, a escrita literária, que funcionou como elo capaz de sustentar a estabilidade psíquica de Joyce, evitando o surto psicótico. Contudo, não apenas a partir da obra, mas do reconhecimento público e da valorização da mesma que lhe adveio, o escritor pôde manter seu equilíbrio psíquico, escrevendo seu nome como sujeito, acredita Lacan. A este quarto elo, Lacan chamou de sinthoma.
A psicanalista Maria Lídia Arraes Alencar, no texto “A escrita de Joyce como suplência da psicose”, diz que “ao tomar o exemplo da obra de Joyce como paradigma, Lacan reconhece no seu trabalho de desmontagem da língua inglesa, um ato de tomar as palavras ao nível de lalangue, de fazer da letra, enquanto lixo, parasito, um rio corrente sonoro, ao deixar-se invadir por sua polifonia, seguir o fluxo indecidível entre o fonema, a palavra e a frase, produzindo um escrito para não ler. Promove, desse modo, um curto-circuito no sentido usual das palavras, usando um tipo especial de equívoco, e, além dos efeitos que causou na literatura, serviu-se de sua arte como suplência à psicose”(25).

A partir da escrita sinthomática de Joyce, que faz Lacan avançar em suas teorias sobre o tratamento das psicoses, formulando novas visões e perspectivas, a arte, neste momento da teoria lacaniana, assume a função de amarrar o simbólico, o imaginário e o real, proporcionando certo arranjo, mesmo que bastante singular, da subjetividade, nos lembra Sandra Autuori. (26) A partir daí, podemos pensar nas relações entre as desmontagens e rearticulações de sentidos ou estruturas propiciadas pela prática da psicanálise e do fazer artístico, ao provocarem o encontro do sujeito com o vazio, mas, também, a partir destes intervalos, sustos, comoções e sobressaltos, passando pelas aberturas ou furos nos encontros com o real, propiciarem as reinvenções do próprio sujeito, possibilitando que, por um lado se mantenha a falta, que é condição para o exercício da subjetividade e, por outro, garantindo uma atribuição de potência ao sujeito, permitindo que ele não se perca nesta falta.
Doris Rinaldi, no texto “Joyce e Lacan: algumas notas sobre escrita e psicanálise”, observa que, com sua arte, Joyce inventa, a partir de pedaços de real que retornam nas epifanias e palavras impostas, uma escrita que faz um nome, enquanto Lacan sustenta no Seminário 23 sua própria invenção – a invenção do real. De acordo com esta autora, nesta fase final do seu ensino, Lacan tenta escrever o próprio sinthoma, marcando a importância de uma maior investigação da escrita (27). Neste ponto, já não importa o produzir sentido, e sim, o efeito de sentido, o saber-fazer com lalangue. Disso tudo, podemos ao menos concluir, provisoriamente, que, apresentando o Sinthoma como uma “escrita de gôzo”, Lacan dá novo estatuto a uma invenção que permite transformar lixo em letra, em luxo, ou transformar restos, traços e fragmentos em uma forma peculiar de prazer, de saber-fazer, a escritura, a arte.


*TEXTO DE ANA LUISA KAMINSKI, apresentado na Jornada Interna da Maiêutica, em Florianópolis, SC, em 10 de julho de 2010


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

(1) RIVERA, Tania. “Gesto analítico, ato criador. Duchamp com Lacan”. In: PULSIONAL Revista de Psicanálise, ano XVIII, no. 184, dez/2005, p. 65
(2) FREUD, Sigmund. “ Escritores Criativos e Devaneios”. In: Obras Completas de Sigmund Freud. Imago Editora, RJ, 1977, VOL. IX
(3) BARTUCCI, Giovanna. “Sublimação e processos de subjetivação: entre a psicanálise e a arte”. Psicanalítica freudiana, escritura borgeana: espaço de constituição de subjetividade. In: Cid, Marcelo; Montoto, Claudio César. Borges Centenário. São Paulo, EDUC, 1999.
(4) HARARI, Roberto. Por Que Não Há Relação Sexual? Organizadores: Carlos A. M. Remor et Al. José Nahar Ed., RJ, 2006, p. 135
(5) IDEM, Ibidem, p. 137.
(6) IDEM, Ibidem, p. 124 e 125.
(7) IDEM, Ibidem, p. 137.
(8) BARTUCCI, Giovanna. “Sublimação e processos de subjetivação: entre a psicanálise e a arte”.
(9) SANTOS, Lúcia de Oliveira. “ O Ser da Linguagem, a Escritura e a Morte : ressonâncias Foucault/Blanchot. Texto apresentado no X CONGRESSO ABRALIC, no RJ, 2006.
(10) FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo: MartinsFontes, 1987.
(11) SANTOS, Lúcia de Oliveira. “ O Ser da Linguagem, a Escritura e a Morte : ressonâncias Foucault/Blanchot
(12) LISPECTOR, Clarice. Laços de Família. RJ: Francisco Alves Editora, 1993
(13) GOTLIB,Nádia Batella. “Um fio de voz: Histórias de Clarice”. In Paixão Segundo GH (edição crítica). Clarice Lispector. Florianópolis, Ed UFSC, 1988,p.161
(14) NUNES, Benedito. Introdução do Coordenador, In Paixão Segundo GH. Clarice Lispector. EdUFSC, 1988, XXVII-XXVIII
(15) LISPECTOR, Clarice. Laços de Família. RJ: Francisco Alves Editora, 1993
(16) KRISTEVA, Júlia. Sol Negro: depressão e melancolia. RJ, Rocco, 1989, p. 31
(17) LACAN, J. O Seminário, livro 7: a ética da psicanálise, p. 149
(18) LISPECTOR, Clarice. Água Viva. Ed. Círculo do Livro, 1973, p. 33.
(19) AUTORI, Sandra. “LACAN E A ARTE: catando migalhas”.
(20) LISPECTOR, Clarice. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres. Ed. Rocco, 1998, p. 92.
(21) BARTHES, Roland. O Prazer do Texto. Ed. Perspectiva,SP, 1977, p.112
(22) LACAN, J. O Seminário, livro 7 , p. 302
(23) PONCE, Xavier Giner. “Sobre parejas modernas: el espectador y la obra del arte”. Site na internet.
(24) LACAN, O Seminário, livro 23, O Sinthoma. Jorge Zahar Ed. Ltda, RJ, 2007(1975). CD ROOM.
(25) ARRAES ALENCAR, Maria Lídia. “A escrita de Joyce e a suplência na psicose”.
(26) AUTUORI, Sandra. “LACAN E A ARTE: catando migalhas”.
(27) RINALDI, Doris. “Joyce e Lacan: algumas notas sobre escrita e psicanálise.”. In: PULSIONAL Revista de Psicanálise.Ano XIX, no 188, DEZ/2006