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Gostaria de dizer que esse trabalho eu apresentei no I Congresso
Nacional de Psicanálise, realizado pela Universidade Federal do Ceará, em maio
de 2001.
Foi o resultado do trabalho do DEA que fiz na França e continua como
parte de minha pesquisa do doutorado num contínuo caminhar.
Plus-de jouir, mais-de-gozar ou mais gozar?
Segundo o dicionário de Psicanálise
Larousse, sob a direção de Chemama, plus-de-jouir é um neologismo criado por
Lacan “para designar por homologia com a mais-valia, a função estrutural à qual
se reduziria geralmente o gozo e que constitui um dos modos de apresentação do
objeto a.”
Lacan, no Seminário “De um Outro ao outro”, em 13 de novembro de1968, diz
que vai introduzir a propósito do objeto a, o lugar onde iremos situar sua
função essencial. “É no discurso sobre a função da renúncia ao gozo que se
introduz o termo do objeto a.”
A produção do objeto a, se dá em torno do mais gozar.
Chemama, em seu texto “Um sujeito para o objeto” de 1997, no livro Goza:
capitalismo, globalização e psicanálise de Goldenberg, faz referência ao
discurso do Mestre e diz que a disjunção entre S/ e a, pode servir num segundo
tempo de introdução à questão da constituição do sujeito. O ser humano porque
fala, não tem acesso direto a seus objetos, encontra sua satisfação na própria
cadeia significante através dos sonhos, atos falhos, lapsos, etc.. Ele continua,
dizendo que há uma segunda leitura essencial a ser feita :” um sujeito, barrado
pelo fato de que fala, vê-se representar por um significante junto a outro
significante, o que não acontece sem a queda de um objeto, o objeto a”.
É a castração que organiza o discurso do mestre, tanto na realidade
psíquica quanto na realidade social. Lacan , fala sobre a produção da mais valia
a partir do discurso do mestre. Anos depois ele introduz o discurso do
capitalista:
Discurso do
mestre Discurso do capitalista
S1
S2 S/
S2
No discurso do capitalista não há separação entre sujeito barrado e a. É
como se nesse discurso houvesse uma tentativa de evitar qualquer separação entre
o sujeito e o objeto.
Na toxicomania o objeto de gozo não é metaforizado, não é regido pelo
significante, por isso o toxicômano fica escravo da droga, em busca desse mais
gozar, um gozo sem interdito.
Lacan diz que o discurso detém os meios de gozar enquanto implica o
sujeito.
Marie-Christine Laznik, em seu texto “La mise en place du concept de
jouissance chez Lacan”, 1990, na Revue Française de Psychanalyse, fala que Freud
coloca o gozo em termos pulsionais. É a libido dessa pulsão insatisfeita que
dará a energia do super eu, quanto mais o sujeito renuncia a esse gozo mais terá
a libido para nutrir o seu super eu.
Fica uma questão: no caso da toxicomania será que essa libido da pulsão
está plena, satisfeita, daí não vai energizar o super eu?
Marie Christine Laznik continua dizendo que se o laço social se funda
sobre a renúncia a satisfazer a pulsão, é que esta implica o gozo de objetos que
poderiam pertencer a outros, ou seja os privar de seu gozo. Isso situa o gozo
no campo do outro. Eis o semelhante introduzido na questão do gozo, e com ele a
questão da religião, dos mandamentos, e, portanto, da lei. Ela continua dizendo
que tudo isso já está em Freud, e que ele se interrogou longamente sobre um
mandamento da lei de Moisés, aquele que ordena amar o próximo. Lacan segue o que
está implícito em Freud e funda o gozo sobre a lei.
Lacan chama atenção que se o gozo consiste em forçar a barreira do
principio do prazer, se uma transgressão é necessária para aceder ao gozo, é a
letra mesma do interdito que permite que este gozo encontre um caminho. Marie
Christhine, cita, ainda, a alusão que Lacan fez a uma passagem de São Paulo na
Epístola aos Romanos que visa mesmo esta articulação quando ele diz:” O que quer
dizer ? Que a lei é o pecado(desejo) ? Certamente não ! Eu conheci o pecado (
desejo) somente pela lei. E, de fato, eu teria ignorado a cobiça se a lei não
tivesse dito : tu não cobiçarás. Mas, aproveitando a oportunidade, o
pecado(desejo) por meio do( mandamento )princípio produziu em mim toda espécie
de cobiça : porque sem a lei o pecado (desejo) está morto". Lacan cita essa
passagem trocando simplesmente pecado por desejo.
Michel Tibon-Cornillot, em seu artigo "L’état toxique" na revista "Le
trimestre psicanalytyque" de 1997, fala da dificuldade de definir a droga e diz
que tóxicos, drogas, psicotrópicos e entorpecentes são termos que designam não
apenas os produtos e as práticas, mas veiculam, além disso, julgamentos de
valor. A própria medicina na busca de pesquisar medicamentos que curem as
doenças está na origem da descoberta das drogas.
A droga é um objeto fixado ao funcionamento para perverter e levar a
desviar de sua função inicial.
O conjunto dos antropólogos, etnobotânicos, neurofisiologistas, todos
formados na disciplina do espírito cientifico, ligam os rituais do xamanismo a
um dos movimentos mais fundamentais e mais antigos dos hominídeos no seio das
sociedades não industriais na sua busca de dar sentido à vida humana.
Tibon-Cornillot fala ainda que entre esses especialistas das religiões, das
culturas ou dos vegetais psicotrópicos, devemos deixar a palavra a Peter T.
Furst, um dos maiores pesquisadores em antropologia dos Índios contemporâneos do
México quando afirma que há milenários as plantas psicodélicas são a parte
integrante da bagagem da humanidade; além disso, elas tiveram um lugar de
primeira importância na ideologia e na prática religiosa dos povos em toda a
superfície do planeta e ainda hoje ocupam um lugar em certas culturas
tradicionais.
O xamanismo, que deu origem ao nascimento de muitos cultos, entre os
quais as grandes religiões mundiais, provém do coração do paleolítico. A prática
do xamanismo remonta há mais ou menos 100.000 anos.
Em 1884, Freud descobre na planta coca e em seu alcalóide, cocaína,
propriedades medicamentosas contra as mais diversas doenças. Ele mesmo faz uso
da cocaína e declara que ela aumentou sua capacidade de energia e de
resistência.
Escreveu um trabalho sobre a droga em julho de 1884 e a forma poética que
deu a seu texto despertou a curiosidade científica da época. Ele utilizou sempre
os mesmos termos em seus trabalhos: estimulante, euforia normal, capacidade de
trabalho aumentada, etc.
Nessa ocasião, Freud foi reconhecido como pesquisador ficando seu nome
ligado à cocaína.
Jean Paul Descombey em seu texto “ “Tâche aveugle et tentation chimique
de Freud” na revista “Le trimestre psychanalytique” de 1997, diz que Freud fez
ao mesmo tempo papel de juiz e parte, visto que suas publicações foram baseadas
em suas auto observações e ele tratou sua “neurastenia” como ele se auto
diagnosticava, pela cocaína. Os fracassos foram sempre atribuídos à má qualidade
do produto, da mesma forma que falam os toxicômanos. Ele negava a dependência
que a cocaína provoca.
Convencido, ele tentou influenciar Martha a fazer uso da cocaína alegando
que iria lhe dar uma boa aparência. O mesmo acontece em relação aos amigos e
colegas. Von Fleischl, por exemplo, que era admirado e invejado por Freud,
recebe a indicação do mesmo para o uso da cocaína a fim de curar a sua
morfinomania e o resultado é desastroso: morre com sofrimentos atrozes. Freud
comete muitos erros e lapsos, dom por dose, esquece na sua lista de trabalhos o
texto onde ele elogia as injeções e coloca nessa data seu texto inicial de 1884.
Todos os erros quando lhe são assinalados, provocam sua irritação e ele não os
corrige nas reedições da “Interpretação dos sonhos.”
Sem criticar a cocaína, ele a recomenda a Fliess que a utiliza contra
suas dores, as aplica sobre as mucosas nasais depois da cauterização desastrosa
dos cornetos de Freud, e trata assim suas neuroses nasais reflexas. Juntos, eles
curam com cocaína suas dores de cabeças respectivas.
O dom da cocaína dado a Fleiss, resulta na expulsão do maternal em sua
auto análise.
Em 1886 a cocaína se apresenta como o terceiro flagelo da humanidade.
Nessa época o uso da coca nos E.U. era corrente e incontrolável até sua
interdição em 1906.
O humor e a toxicomania
O bom humor, de origem endógena ou tóxica, diminui as
forças de inibição, a crítica em particular, e torna por isso, de novo
abordáveis as fontes de prazer, onde a repressão fechava o acesso. É importante
notar como a exaltação do humor nos torna pouco exigentes em relação à qualidade
de espírito. É que o humor completa o espírito assim como o espírito deve se
esforçar para completar o humor que oferece as possibilidades de gozo
habitualmente inibidas e entre estas o prazer do absurdo.
No texto « O Humor » de 1927, Freud diz que o
humor tem algo de liberador e possui também o triunfo do narcisismo, afirmando
portanto a invulnerabilidade do ego. O ego se recusa a sofrer por conta das
provocações da realidade. Ao contrário, faz dos traumas do mundo externo
ocasiões para obter prazer. Essa propriedade constitui um aspecto fundamental
do humor. O humor é rebelde. Podemos observar que as duas principais
características do humor : demência da realidade, afirmação do princípio do
prazer, aproximam o humor dos processos regressivos ou reativos que tanto nos
atraem na psicopatologia.
Enquanto que meio de defesa contra a dor, ele se
coloca na grande série dos métodos que a vida psíquica do homem tem construído
visando se desviar do constrangimento da dor, série que se abre para a neurose e
a loucura e abraça igualmente a embriaguez, a auto-absorção, o êxtase. O humor
deve a essa relação uma dignidade que falta totalmente, por exemplo, aos
chistes, porque esses têm simplesmente por objetivo, obterem uma produção de
prazer, ou essa produção, ser colocada a serviço da agressão.
A mudança de humor é uma das maiores atrações que
o ser humano encontra no álcool e. por isso é tão difícil a maioria das pessoas
renunciarem ao alcoolismo.
Qual a diferença entre o alcoolismo e a
toxicomania? Segundo Charles Melman em seu livro “Alcoolismo, delinquência,
toxicomania”, de 1992, no alcoolismo o objeto almejado nesse gozo infinito, é o
falo, e isso podemos constatar na clínica tão falicizada do alcoolista. No
toxicômano a grande diferença é que não é o objeto fálico que está em causa,
justamente por isso eles nos parecem tão estranhos e não são bem aceitos pela
sociedade. O alcoolismo é bem tolerado socialmente, fica sempre no registro da
patologia, como alguém que não para diante do que faz limite, do que faz
barreira. No alcoolismo, o falo, é um objeto ao qual são atribuídas qualidades
viris, a economia psíquica nos é familiar.
A droga, objeto Real, introduz o Sujeito em um
mundo virtual, fora do caráter fundamentalmente
decepcionante do simbólico. A toxicomania aparece como a pulsão interativa à
experiência da barra, a droga vem barrar o domínio do desejo do Outro. Quando os
toxicômanos estão bem drogados eles dizem que estão completamente
barrados.
Às vezes as drogas são utilizadas como objeto de adição. Segundo Joyce
MacDougall o termo adição vem para substituir toxicomania. A autora emprega o
termo de adição para os casos onde o objeto é percebido como bom e também como o
que dá sentido à vida. Será utilizado na ilusão de substituir as dificuldades da
vida cotidiana. Ela nos apresenta algumas hipóteses concernente a solução
aditiva à dor mental, argumentando por exemplo que a relação mãe-bêbe é decisiva
para o modo de organização do funcionamento psíquico. Uma mãe, seguindo seus
próprios desejos inconscientes, pode provocar em seu bêbe uma relação aditiva à
sua presença e a seus cuidados. A criança não é capaz de desenvolver seus
próprios recursos psíquicos diante das situações perigosas, ela está na
impossibilidade de fazer face aos perigo e por isto necessita da presença da
mãe.
Freud, ainda no texto “Três ensaios sobre a teoria da
sexualidade” de 1905, fala da importância das primeiras relações mãe-bêbe e de
como ela se origina dos sentimentos dessa mãe com a sua própria sexualidade. É
através dessa relação que ela vai ensinar seu filho a amar, a ser uma pessoa
forte e capaz de enfrentar as dificuldades. O excesso de mimo na criança pode
torná-la incapaz de lidar com a falta de amor ou com uma pequena quantidade
dele. O que se passa nessa relação que impossibilita essa criança de crescer e
enfrentar as dificuldades da vida?
Bergès e Balbo em seu livro "A criança e a Psicanálise",
1996,dizem que o falo é nomeado “significante da falta no Outro” e que em uma
apresentação topológica, o lugar do Outro encontra-se furado e as bordas que
delimitam e formam esse buraco, são exatamente o lugar da circulação de objetos
e de gozo, que fazem o suporte das trocas significantes entre a mãe e o filho. É
pelo objeto voz que se pode dizer que a mãe está no lugar do Outro. A voz
situa-se do lado dos objetos a e também como vetor, pela palavra, dos
significantes da mãe. A mãe não fala apenas em voz alta mas é por meio da voz
que ela usa o significante (supereu) que interdita o transbordamento do
funcionamento, opera como limite ao gozo. “Uma mãe que não se situa senão no dom
e não na troca,” não pode reduzir o transbordamento de seu filho visto que ela
mesma está fora da função fálica e por conseguinte fora de sua
lei.
Na toxicomania o gozo está fora.
As toxicomanias são um sintoma do social?
Podemos falar de sintoma social enquanto dado que a toxicomania está inscrita,
de certa forma sub-jacente, quer dizer não explícita, em um discurso dominante
de uma sociedade em uma determinada época, onde prevalece o ideal consumista,
como nos diz Melman?
Tratando-se de um sintoma, manifestação do inconsciente, é sem
dúvida, porque esse sintoma vem dizer uma verdade, verdade que nós conhecemos e
tem origem no mal-estar da cultura.
No discurso do mestre podemos observar que pelo fato do sujeito ser
barrado pela fala, ele vê-se representar por um significante junto a outro
significante com a queda do objeto a. Já no discurso do capitalista parece uma
tentativa de Lacan dar conta desse capitalismo contemporâneo. Ao contrário do
discurso do mestre, não há barra entre S/ e a, é como se evitasse qualquer
separação entre o sujeito e o objeto.
Será que o uso de drogas está ligado à confrontação entre dois
gozos, um gozo confrontado à castração, fálico, limitado e outro gozo que Lacan
descreve como gozo feminino, que ultrapassa os limites, conduz ao delírio, à
ilusão, à morte?
Lacan, em 1946, no texto "Propósitos sobre a causalidade psíquica",
nos Escritos, nos fala de como Freud foi brilhante tendo a intuição de notar a
importância psíquica dos primeiros jogos das crianças, esconde-esconde, etc.
nesses jogos Freud cita o exemplo do Fort-Da. Ninguém podia imaginar a
importância de seu caráter interativo, da repetição, em relação a toda separação
do objeto amado, incluindo o desmame. Esse processo vai estruturar todo o
desenvolvimento psíquico, com a possibilidade de renúncia. No final desse
desenvolvimento nós encontramos a ligação do Eu (Moi) primordial, essencialmente
alienado, e o sacrifício primitivo essencialmente suicida, quer dizer a
estrutura fundamental da loucura. Essa discordância entre o Eu (Moi) e o ser ,
será o que vai dar o tom fundamental ao longo das fases da história psíquica,
onde a função será a resolução do desenvolvimento. Toda resolução dessa
discordância terá um eco nas profundezas do imaginário da agressão suicida
narcísica. Rapidamente essa miragem que acontece, por exemplo, na intoxicação
orgânica, pode representar o papel de uma aparente liberdade.
Lacan, no Seminário de 13 de maio de 1959 sobre "O desejo e sua
interpretação", diz que a coisa freudiana é o desejo e que o desejo nós não
podemos considerar como normalizado, reduzido, ao contrário o desejo é agitado,
atormentado. Após a articulação analítica feita por Freud, o desejo se apresenta
com as características de Lust. Em alemão essa palavra conserva toda sua
ambivalência de prazer e desejo. Lacan fala também da questão do desejo no
seminário de 3 de junho de 1959 e enfatiza a insatisfação do desejo, que esse
mal da cultura é exatamente o mal do desejo.
Podemos concluir que a toxicomania é um modo de vida onde o sujeito
foge do mundo, ele não suporta mais a irrupção de afetos opressivos e vai em
busca desse mais gozar, gozo pleno, sem limite e sem barra que o conduz à morte.
A toxicomania faz parte da tendência psíquica à pulsão de morte, o
que está em permanente representação nos jogos da criança, o sujeito passa a ser
comandado pelo objeto, ele não o domina mais. Freud foi muito sábio quando
trouxe o For-Da e toda importância dos jogos infantis na separação do objeto,
isso vale para o desmame.
Ao nível da subjetividade, ela vai depender do caráter efetivo das
operações incluídas na castração e ao nível do social, ele passa a reencontrar
no real o objeto perdido do gozo.
Trata-se de um sintoma do desejo que vai refletir no sintoma do
social.
Talvez fosse interessante retomarmos um dito de Marx “ a produção
não cria somente um objeto para o sujeito mas um sujeito para o
objeto.”
Será que tudo isso nos leva a repensar por que a toxicomania ficou
ausente durante anos da clínica psicanalítica?
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terça-feira, 23 de outubro de 2012
O Mais Gozar na Toxicomania
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