terça-feira, 23 de outubro de 2012

O Édipo e as estruturas clínicas (no Seminário 5 de Lacan)

 Dulce Campos
Apresentado no Simpósio de Brasília/DF - 2002
Numa perspectiva diferente das demais ciências humanas, a psicanálise constituiu-se a partir da percepção de que se fazia necessária a existência de uma Lei capaz de disciplinar as pulsões humanas que punham em risco a vida social. Freud observou que esta Lei, inscrita numa anterioridade simbólica, era mediada pela linguagem: no princípio era o Verbo e o Verbo era Deus... concomitantemente inserida numa operatória: no princípio era a ação, fazendo da palavra, ato.

Retomando as teorias do édipo freudiano e o mito do pai da horda, Lacan incorporou a dialética desejo-lei à metáfora paterna. Critica Freud por sugerir um Édipo responsável pela invasão do materno e do pulsional na constituição do sujeito. Aponta para o complexo parental, propondo a substituição das teorias dos mitos por uma teoria de base antropológica apoiada em Lévi Strauss. Considera o Nome-do-Pai suporte da função simbólica que, desde a aurora dos tempos históricos, identifica sua pessoa à figura da lei. (Escritos, 278-279) 4. (Kauf., 141) 3.

A distinção simbólico, imaginário e real serviu de base às suas reflexões para situar diferenças funcionais, variáveis intervenientes da triangulação: mãe-falo-criança; mãe-filho-pai. O genital, irrepresentável no inconsciente, deixou de ser referência na distinção entre os sexos. Surge no seu lugar a função fálica unificando o objeto do desejo - o falo - nos homens e nas mulheres. O falo permanece velado até o final dos séculos pela simples razão de que ele é um significante último na relação do significante com o significado ( Sem.5, 249)5. Lacan reconhece que o órgão sexual masculino desempenha importantíssimo papel, como representante do objeto de desejo. (Sem.5,p.205)5. Para os seres humanos haveria duas alternativas: ser possuidor do falo ou ser castrado. Em torno desta realidade, a dialética manifesta-se no sujeito:
ser - não ser o falo; ter - não ter o falo.
O falo, objeto do desejo, elemento de universalização do Édipo desde Freud, mobiliza a criança no sentido de que ela se torne sujeito do próprio desejo.Lacan contesta a concepção do relacionamento criança-mãe como relação de objeto, dual, de uma ligação real. No momento em que essa relação parece se concretizar surge um terceiro imaginário, o falo, representado pelo pênis ( órgão erétil que simboliza o lugar do gozo, não enquanto ele mesmo, nem sequer como imagem, mas enquanto parte faltosa na imagem desejada ( Kauf. 195) . É também reconhecido por Freud como central na economia libidinal: se a criança é real e a mãe simbólica, existe entre elas o falo que suscita na mãe a inveja do pênis. Nos momentos de carência a criança simboliza a mãe como pura potência de dom que tudo lhe pode doar conforme sua vontade e que por isso, a ela, a criança se sujeita. Sobre o fundo da presença-ausência a criança a simboliza no brinquedo do fort-dá.Experimenta a ambivalência: em relação à mãe como presença de que quer se livrar (fort); como ausência que a impulsiona a chamá-la para perto de si (dá). Os vocábulos – fort - dá - ainda mal articulados marcam a entrada da criança no mundo da simbolização. Modelo do amor materno,a mãe promete o que não tem. Criança e mãe constituem uma primeira realidade: a criança surge como aquela que busca o desejo do desejo materno.Não se trata de desejar a mãe, mas desejar o seu desejo, dando lugar a uma identificação primitiva com o falo desejado pela mãe. Frustrada pela mãe quanto ao objeto imaginário e privada do objeto real, a criança caminha na dialética da demanda e do desejo sem conseguir encontrar o que pode lhe saciar e, constatando que tal objeto se encontra num aquém ou num além da mãe como desejo impossível. Nesta realidade da mãe que decepciona, o pai está presente de maneira velada, pré-existente no simbólico da triangulação.(Sem.5,208)5.( Kauf. 334) 3. Somente vai se tornar sensível e concreto à criança ao exercer a função privadora, quebrando a relação simbiótica entre mãe e filho. Age como normatizador, tornando-se necessidade da cadeia significante.Pode ser levada a perceber que a mãe também deseja alguma coisa além dela e que só poderá conseguí-la através do pai. A criança terá que renunciar ao falo para tê-lo de um outro que lho poderá dar. O triângulo mãe-desejo-criança na equação desejo do desejo da mãe enfatizada por Lacan, já supõe uma tripartição implícita (Sem.5, 210) 5. E como este desejo é o falo, surge o desafio para o filho que, num dado momento deseja sê-lo para a mãe e, noutro momento, deseja tê-lo. O pai doador só existirá por uma construção mítica, por trás da mãe simbólica. Trata-se sempre, não de uma construção no real, mas no discurso concreto como metáfora. Enquanto simbólico, o Pai não é controlável, deixou no discurso o vestígio do Nome-do-Pai e só se efetiva numa metáfora quando aí se põe literalmente no lugar do desejo da mãe. Ocupando o lugar deste Outro materno, a presença do Pai simbólico onde esteve o desejo materno, vai se revelando mais e mais: não é o pai biológico; não é o que ama a mãe acima de tudo; não é porque ele desempenha tais funções concretas atribuídas pela cultura. Trata-se de Um-pai que a mãe funda nesta posição de Lei, de palavra final, de privador da relação fusionada com o filho.
Nos capítulos do Seminário 5 - Três Tempos do Édipo, Lacan convida à reflexão que permite correlacioná-los com as estruturas clínicas: psicose, neurose e perversão.
A posição do psicótico é narcísica, não entra no que se convencionou chamar relação de objeto. O objeto que com ele se funde e se confunde permanece sendo a mãe, e ele o seu falo.
Na falha radical do Nome-do-Pai, a criança encontra-se colada à mãe e ao desejo dela, este Outro primordial e exclusivo, sem possibilidade de passagem para um Outro- o Pai. Na triangulação criança-desejo (falo)-mãe, a criança permanece aderida ao real, sem abertura para o Nome-do-Pai, o significante–mestre na constituição da cadeia. Não ocorre a metáfora paterna que assim se deveria constituir: a Lei do pai deve ficar no lugar do significante: desejo da mãe. Para isso a mãe precisa funcionar como a que funda, pela palavra, o lugar de um Outro equivalente à Lei. Somente assim, trazido pela palavra da mãe, o Pai ocupará este lugar, separando a estrutura psicótica da neurose. É preciso que o pai real, não forçosamente o pai do sujeito, mas Um-pai, seja chamado a este lugar e assim reconhecido pela mãe. E que se situe numa posição terceira, tendo por base o par a - a’, isto é, eu - objeto ou ideal-realidade, dizendo respeito ao sujeito no campo de agressão erotizada em que vive e que, ocupando o lugar do Outro como significante, aja como representante da Lei.(Escritos 563-584) 4.
Já o perverso elege o falo como existindo no corpo da mãe, assim sucede no objeto fetiche.Ele coloca-se acima dalei. Permanece em nívem de gozo e não ascende ao desejo. Seu mecanismo é o da recusa. Em nível de estrutura, os perversos são com siderados eticamente mau caráter e delinqüentes. Isentos de culpa denunciam as distorções do Ideal do eu e as ressonâncias do eu ideal.
A questão do neurótico é diferente: refere-se ao Outro, o Pai, como aquele que substitui o Outro-mãe e está para além dela e dele próprio. Ele não é Lei, a representa, na relação código-mensagem. Trata-se do sujeito barrado, submetido ao Outro, fala através dos sintomas que se diversificam, em direção do desejo próprio.
É a partir do segundo tempo que podemos falar precisamente do Édipo com a entrada do pai na relação mãe-criança. O Édipo do consenso, o que insere mãe e criança na lei da cultura, presença do “Não” do pai na relação aparentemente dual. A função privadora de pai surge na realidade abruptamente. Lacan comenta que a maioria dos tratamentos termina ai. Na posição de ser o falo da mãe, Hans defrontra-se com a chegada da irmãzinha, e o real desloca-se do imaginário. Contudo, como o significante já se encontra-se lá, no simbólico, ele cria a fobia do cavalo, fazendo suplência do Nome-do-Pai, permitindo-se viver a angústia como metáfora. Se não castrado pelo pai, torna-se castrado como o pai, ponto que determinou o desdobramento de suas escolhas amorosas posteriores (Kauf.,336) 3. Através do sonho em que um encanador onipotente era por ele convocado para substituir o pai tentou livrar-se da fantasia de assujeitamento (Sem. 5, 196,200)5, partindo para a construção do seu próprio modelo.
É sobre a mãe que a ação privadora paterna se faz e sobre o filho, a ação castradora. Por esse caminho a criança escapa da verwerfung (foraclusão do Nome-do-Pai, primeiro tempo do Édipo), sofre o corte ( verdrägung - recalcamento do desejo - segundo tempo do Édipo, passa do imaginário ao simbólico. O falo, simulacro dos antigos, é empreendido por Lacan numa dupla linhagem: primeiro, em sua especificidade de significante ambíguo; depois, como representante da carência de gozo característica do sujeito em sua relação com o real (Kauf.,194) 3. Segundo a lei do simbólico não nos constituímos como homem ou como mulher, senão pelo recalcamento e mesmo pelo repúdio do feminino-materno concebido como a marca da animalidade: por ser o real de mediação impossível (Kauf.,142) 3.No discurso o sintoma fala, denunciando os deslocamentos e as substituições em decorrência do recalcamento do desejo inscrito no inconsciente.
Ao entrar no terceiro tempo a criança se defronta com um momento novo, privilegiado. Além de privador, o pai surge como aquele que promete à criança o que ela deseja. Promete porque o tem para doar - modelo do amor paterno.( Sem. 5, 201) 5. A promessa do pai até então privador, torna este momento fecundo e encoraja a criança a postergar a realização do desejo até poder usar o objeto gratificante sem se sentir somente esmagada pelas interdições. Pode viver esse momento como uma espécie de latência que lhe possibilita, enquanto espera, utilizar sua energia em produções artísticas e literárias.(Sem.5,) 5.Dizia uma criança a Freud: meu pai é galo; agora eu sou um frango, quando for maior ficarei galo:...( O. C.XIII, 169) 1 A um analisante eu dizia: hoje você é pinto, mas vai ser galo... como seu pai...: crescer, ter mulher e filhos....
Fruto da identificação ao pai surge o Ideal do eu. No triângulo simbólico, a criança se inscreve: no polo materno começa a se constituir como tudo o que será realidade; no polo paterno, tudo o que será supereu.Daí constrói o eu ideal voltando o amor para si mesmo como na infância gozava o eu real. No caso do homem, ele se torna viril, na medida em que se constitui mais ou menos a própria metáfora, quando se faz um pai em potencial ( Kauf., 337) 3 . A mulher, não tendo que se identificar à virilidade, caminha em direção ao falo, sabendo onde ele está, aonde irá buscá-lo, indo em direção àquele que o tem. Na feminilidade há sempre algo de extraviado. Na dialética significante –significado é necessário que alguma coisa da relação natural seja amputada a fim de que se torne o próprio elemento significante da demanda. (Sem. 5, 200, 201,202,296) 5.
Lacan inclui a homossexualidade (Sem. 5, 219) 5 no contexto das neuroses como um problema de identificação, falha da metáfora paterna, surgida no segundo tempo e aparecendo no terceiro em nível de Ideal de eu, podendo ser atribuída a por vários fatores: excesso de autoridade do pai com a conseqüente desvalorização da mulher, o que induz implicitamente o filho a procurar os portadores de pênis (falo) como pares sexuais, os sujeitos valiosos; o pai que, por amar excessivamente a esposa, a ela se submete, e termina por lhe conferir o poder; a mãe excessivamente zelosa do filho,termina por castrá-lo, supervalorizando-se como mulher e conduzindo-o a uma identificação do tipo especular. Questões:
- O homossexual teria alcançado o terceiro tempo do Édipo, mesmo tendo começado a falhar no segundo, porquanto se trataria apenas de uma inversão na escolha do objeto sexual?
Lacan afirma que a homossexualidade é curável a despeito do que se diga em contrário. Tratar-se-ia de um processo de cura semelhante ao das diferentes neuroses, como sintoma?
-Na minha experiência clínica, nunca me foi demandada a cura deste sintoma. São outras incorrências do tipo das que se encontram nas neuroses de modo geral que os traz ou os mantém em tratamento.
Lacan aborda a perversão nos capítulos do Édipo, levando-nos a questões:
- Estaria enquadrada na neurose como sintoma, ou seria uma estrutura a parte?
- Teria o sujeito perverso chegado à metáfora paterna e depois a recusado? Em que tempo do Édipo o sujeito se subverteria à Lei, ou seja, a
recusaria?
Mais adiante ilustra a perversão estrutural (?) citando André Gide que teria se fixado a um momento de sedução por ele vivido, precocemente, sem mediação, com a tia materna. E que nele parece ter tido efeito de trauma. Mais tarde só se pôde constituir no relacionamento humano através de cartas literárias, ocupando o lugar de Madeleine, sua prima, a quem desposou. Era a filha da tia que tentara seduzí-lo. Ele só conseguiu existir através da prima com quem se identificou como criança desejada pela mãe. Expressava seu amor à esposa pelas cartas. Assim preenchia o vazio do amor sem desejo, desviando-o para a escrita e elegendo-a objeto de amor supremo.Por identificação fez dela Ideal de eu, centrando-se nele próprio, fixando-se eternamente apaixonado pela criança acariciada que desejou ser. Já na viagem de núpcias, junto à esposa, seus pensamentos se dirigiam para os rapazinhos que encontrava no trem. Essa sua atração em nível de desejos, não o enquadraria, por certo, como pedofílico.Em torno da esposa, Gide gira numa dependência mortal, vive uma forma de amor embalsamado, coisificado O fato de não ter sido criança desejada pela mãe e da condição coisificada que assumiu no relacionamento foram as hipóteses de Lacan que o teriam marcado, na origem: a falta de uma afetividade própria, a presença de uma afetividade esvaziada.
Não vejo como essas dificuldades de Gide possam o enquadrar no âmbito da perversão como estrutura, uma vez que ele não apresentou o caráter anti- ético, delinqüente ou imoral. Como observa Lacan tratava-se de um risco de todas as paixões que alienam o desejo num objeto (Sem., 270, 271) 5. Seus devaneios eróticos giravam em torno da criança que teria sido ele mesmo, apaixonado até o final da vida por aquele menininho, acariciado e desejado pela tia –mãe. Sua recusa ao amor incestuoso da tia, amor sedutor e sem mediação, teria sido a marca de perversão a ele atribuída? Ou, pelo contrário, revelaria sua adequação à lei contra o incesto, muito mais condizente com o sintoma numa estrutura neurótica? Não uma recusa, no quadro das estruturas clínicas, mas um sintoma, quem sabe, da ordem da inibição, da fobia... que ele estaria procurando manejar pela escrita literária. Seu desespero ao perder as cartas, parece apontar para uma neurose, perversão.
Ao colocar a perversão nos capítulos do Édipo, no âmbito das neuroses, admitimos que algo se constituiria no contexto da dialética ter - não ter o falo, isento da patologia. A perversão de que Freud fala em 1905 figura como estruturante na constituição do sujeito infantil por ele denominando perversão polimorfa, não a enquadrando como patologia (Kauf., 415 a 423) 3. (Sem. 5, 268) 5 (Freud, Três Ensaios)1. No capítulo sobre o desejo e o gozo deste Seminário 5, Lacan explicitará a perversão como estrutura.
Quando pensamos em cura do Édipo não entendemos que isto se refira à sua dissolução ou superação. Suas marcas expressam a caminhada do sujeito, o modo como viveu a triangulação. Em Édipo nunca se apagaram as cicatrizes nos pés amarrados para o livrar da predição dos oráculos. As seqüelas do neurótico permanecem sob as máscaras dos sintomas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário