23/07/2002 00h00
por Jorge Forbes
INTRODUÇÃO: O ENTUSIASMO DA INVENÇÃO
Desligar-se da sua maneira habitual de usar a palavra por uma nova ligação é o efeito de uma análise, como o apresentei no livro Da palavra ao gesto do analista: o “recontrato com a palavra” .
Num momento, há queixa e há esperança. Mas após uma análise a pessoa perde a possibilidade de se queixar. Perde, então, todas as esperanças. Caso pareça pessimista, não o é. A análise não gera conformismo, nem apatia. Basta perceber que o esperançoso, como o queixoso, está insatisfeito com o presente. A esperança também pode ser, paradoxalmente, o afeto dos deprimidos. Sem ela, tem vez a ação. Esta é a boa perspectiva.
Quem passa por uma análise não pode buscar alívio em mais uma interpretação. Não espera um sentido diferente, outra significação, a revelação de uma história que lhe esclareça sobre os obstáculos que tem enfrentado. Já não será alguém que espera remover obstáculos para ser feliz.
Então, seja um prelúdio à conferência de hoje a constatação de que a clínica do real tem como expressão prática a perda da esperança de um sentido último e, em conseqüência, o entusiasmo da invenção.
NOVOS SINTOMAS
O fracasso escolar, a toxicomania, as bulimias, as anorexias, a violência despropositada têm em comum a impossibilidade de serem explicados. Suas causas não são decifráveis por via alguma: da medicina, da psicologia, da pedagogia.
Mas a psicanálise, que não padece pelo desconhecimento das causas, toma esses sintomas em conjunto pela característica de estarem – todos - no curto-circuito da fala. Neles, há satisfação ao largo da cadeia associativa, a saber, fora dela, e não adianta, portanto, tentar tratá-los pela associação livre, pelo circuito da palavra.
Desses sintomas, hoje importa-nos especialmente a violência despropositada e, assim, surpresiva.
Muitos pais têm dormido com a porta do quarto trancada, apavorados com os filhos, desde os assassinatos recentes. Uma menina mata pai e mãe. Um menino degola a avó e a empregada. A imprensa interroga os analistas.
De costume, procura-se a causa. Logo, surgem respostas de um tom psiquiátrico-forense que recupera Lombroso, na busca de um modo de prever esses acontecimentos, detectar nas pessoas características que levam a essas tragédias.
Pelo absurdo disso, sugeri em uma revista, que os pais gostariam de colocar, nas portas dos seus quartos, detectores de mentais – como se fosse possível criar um instrumento de detecção do perigo nos filhos, nos amigos dos filhos... Instrumento mágico, em que um alarme identificaria o culpado previamente.
Não se trata de reconhecer nessa assassina dos pais um tipo lombrosiano, com gravíssima alteração cerebral, ou de conformar-se com a banalização do mal (Arendt) que tornaria a vida uma loteria, na qual suportar a aleatoriedade de nossas desgraças é tudo o que podemos fazer.
Enfrentamos, sim, uma doença grave, desconhecida pela psicopatologia tradicional. Na psicanálise foi por vezes declarado, sobre a menina, o diagnóstico de psicose. Não concordo, necessariamente. De um olhar médico, seria psicótica uma menina sem nenhum sinal elementar? Por outro lado, seria psicótica quem planeja friamente, por dois meses, a morte do pai e da mãe?
Há como enquadrá-la sim, de alguma maneira, nesse diagnóstico. Mas é melhor notarmos a novidade dessa doença, para chamá-la, talvez, esperando melhor inteligência, de nova histeria.
Conhecemos bem a velha histeria, fálica. No imaginário, seu gozo assume duas vertentes. De um lado, virá pela sedução seguida de recusa, daquela mulher que exagera nos atributos femininos e goza no fracasso da relação: “você acha que eu fiquei olhando para você à noite inteira?” “Não, eu estava olhando para a mesa atrás de você”. Não só os homens têm ejaculação precoce: a histérica fálica, pode nem precisar de um beijo para se satisfazer.
De outro lado, será o gozo da mulher exibicionista, poderosa, atuante. Ela faz da combatividade um valor evidente na maneira de falar, de vestir, de escolher seus namorados.
Dessa velha histeria nós aprendemos a tratar, aprendemos a rir dela, a sofrer por ela, a namorá-la. Então, surge a nova histeria, muito mais perigosa. Sintomaticamente, ela atenta contra todos os semblantes da civilização, da cultura, do amor, da amizade. É irrefreável nesse gozo. Na atualidade, em que a justiça e a psicanálise insistem em preservar modelos rígidos (edípicos, hierárquicos) enquanto o mundo lhes escapa, a nova histérica sabe que ela também escapa.
Ainda não sabemos lidar com o “vírus psíquico”, altamente contagioso, dessa nova histeria, como um dia não soubemos operar com o HIV. De início, sequer tínhamos um nome para ele.
Nomeei a nova histérica de “Medeia”. É aquela que não pára frente a nada, que vingou a traição de Jasão destruindo tudo o que tinham em comum. Ela matou seus filhos.
Estaríamos então em uma epidemia de medeias. O que tem contrapartida na tendência à depressão dos meninos, dos adolescentes e homens mais velhos (que já não voltam a ligar a um telefone, uma vez, ocupado).
Há risco social maior em uma Medeia que em um psicótico: está na intencionalidade. É o componente que, nessas conjecturas, não me permite confundi-los. É também o que escandaliza a imprensa.
Preocupam-me esses casos nos consultórios dos jovens terapeutas, no dia-a-dia da clínica. Recebi uma jovem em supervisão sobre o atendimento de uma menina de dezenove anos que, junto com as amigas, teria encontrado uma “maravilhosa” maneira de conseguir dinheiro para ir às compras no shopping center.
Sendo, da sua turma, aquela que tinha um namorado há mais tempo, diria a ele que estava grávida. Na opção do aborto, exigiria dele o dinheiro. Não pensava nas conseqüências. Indagada pela terapeuta, não lhe importava que o namorado guardasse o ressentimento do aborto, do filho perdido, do risco sofrido por sua namorada: “ele é meio chato e gosta de uns filmes esquisitos. Que se dane!”
Não são casos isolados. Tenho recebido muitos, em análise ou supervisão. É, sim, uma epidemia em movimento. Os colegas, como a sociedade e a imprensa, perguntam-se o que fazer.
UMA NOVA LÓGICA
A violência hoje é surpreendente, não o fora antes. O homem sempre soube onde a esperar. A questão latejante nesse tempo, portanto, não é a violência, mas a sua emergência surpreendente, de uma agressão fatal realizada, por exemplo, durante o sono e pelas mãos de um filho.
Têm sido duas as reações a essa violência: por um lado, o apelo ao imperativo das obrigações, que convoca novamente a palmatória como solução, ou o policiamento o mais militarizado; por outro, o recurso à religião, ao amor do pai, ao bom caminho da providência. São promessas reacionárias sobre a vitória do bem contra o mal, condicionadas às mais estritas ordens e penas.
Uma colega, responsável pela educação de crianças de classes média alta e alta, perguntava-me o que fazer quando essas crianças começaram a chegar na escola com marcas vermelhas no corpo, no rosto. Entrevistados os pais, disseram-lhe que atendiam à recomendação feita na mídia e nos livros por profissionais psi: a educação rígida seria preventiva.
São os “especialistas” da mídia – de notoriedade pública e desconsiderados nos próprios meios profissionais – que lançam uma solução à angústia dos pais neste momento: o reforço da autoridade, até fisicamente violenta, contra os filhos.
Aposta-se no retorno da censura, da ordem unida, da hierarquia, da disciplina militar, como se a abertura antes dada aos filhos tivesse sido excessiva, como se pais e filhos tivessem conversado demais. É uma das reações ou resistências à surpresa: uma moral expressa pela força, um apelo à ordem que exacerba o sentido de obrigação.
A moral da religião é a outra via pela qual se reage. A via que oferece acolhimento. Está, por exemplo, na leitura dos livros religiosos, em que a filha assassina busca a compreensão do que fez aos pais. Haveria de ter sido possuída por uma entidade que ela não identifica, e levada ao crime por uma causa que a excede em força.
No rádio, acompanhei o relato da namorada religiosa de um jogador de futebol descrente, até seu sucesso em convencê-lo de que machucou a perna e perdeu um contrato por não ter atendido ao apelo de Deus.
A sociedade atual procura resguardo do pavor através de pais que batem em filhos ou de namoradas que ensinam a via da conciliação com o pulso firme de uma providência transcendente. O resguardo do pavor é encontrado, portanto, no amor e na culpa. No amor idiota, identitário, autoritário. Um amor piegas.
Menninger, de uma linha terapêutica norte-americana conhecida aqui, propunha o tratamento nessa base: ganhar o afeto do paciente e tratá-lo pela culpa. Foi o que outro americano, Meeks, concebeu como uma “aliança terapêutica”, num livro de grande aceitação no Brasil (A frágil aliança): associar-se ao lado sadio de alguém para tratar seu lado mau.
A psicanálise não consente com o uso dessas ferramentas morais. Não sonha com o passado – da palmatória ou do amor ao Criador – repulsa o reacionarismo. Não traça uma linha asséptica entre o bem e o mal. Por isso, supera o vínculo afetivo organizado pela culpa.
Em 1948, quanto tratou a agressividade, Lacan propôs uma nova lógica como alternativa às lógicas morais da obrigação e da emoção . É uma terceira via, ética. Retomei sua proposta no capítulo sobre “o recontrato com a palavra”.
“Numa análise, porém, não será o bem que vencerá o mal ou o contrário, o mal que vencerá o bem. Existe uma nova lógica, a lógica do desejo fora dessa dicotomia (...) não se trata nem da moral do sensível, nem da moral do trabalho, mas da ética do desejo, sem nenhum parâmetro normativo para que possa ser chamada de moral”.
A HONRA
As lágrimas da assassina no enterro dos pais causaram furor. Como se fossem a extrema audácia na hipocrisia. Mas é precipitado reconhecer sua falsidade. Ela perdeu a mãe, seu namorado foi preso. Noutro momento, ela fora agente da tragédia. Então, tornou-se vítima. Vivemos um tempo em que o câmbio de emoções é rápido, em um mundo que perdeu a vergonha. As pessoas já não honram suas emoções.
O valor maior atual é, portanto, “salvar a própria pele”. O senso de luta pela sobrevivência, agora, justifica o desvario, a emoção fugaz, com a mais completa ausência de vergonha. Por isso, o reacionarismo tenta recuperar os valores e soluções do passado, esteios da ordem constante, o que não agrada a psicanálise.
Existe valor maior que “salvar a própria vida a qualquer preço”? Não para os covardes, os burocratas, os mutualistas, a assassina.
Encontrar valor maior que a própria pele é estar diante da segunda morte. Há duas formas de morrer: uma, biológica, e outra em que se perde algo maior, superior à biologia, que Lacan chamou de S1.
É algo que marca um sujeito em seu contato com a civilização: contato que funda sua vida no que ela é mais que nascer, crescer, reproduzir-se e morrer.
É algo grafitado no sujeito, singular a ele - que a biologia não reconhece - íntimo e que faz toda a diferença. É um ponto que, quando invadido, reage: “aí, não!” O limite de alguém. Houve um tempo em que os meninos de escola marcavam esse limite aos colegas dizendo: “ô cara, não apela!”
Essa marca é aquilo sem o quê a vida não vale a pena. Quem não a sufoca, sabe que viver é mais que “salvar a própria pele”, é ter algo pelo que vale perder a vida biológica. Lacan mostra isso às pessoas em análise, mas também não permite que elas confundam essa marca com um ideal (o que seria moralizante).
Respondo a uma colega da área de educação, quando insisto que a psicanálise não quer dos analisandos o sacrifício pelo dever, o heroísmo do ideal. Não quer criar novos Tiradentes, a serem imolados por um bem maior, coletivo. A marca, esse valor, é sempre pessoal. Sem essência estrutural. É puro grafite e é, em cada um, um grafite original.
Vinícius de Moraes cantou esse a mais, que distingue a paixão de cada um, ao lamentar por “quem passou por essa vida e não viveu”. Cada nascimento é uma chance. Quem cede e entra na vala do “todo mundo”, quem escolhe a trincheira e desmerece sua chance, não percebe que trincheira é túmulo.
Passar pela vida e viver é permitir a emergência do S1 na civilização, o que institui um estilo. Chico Buarque de Holanda tem um estilo. Van Gogh, Beethoven, Chopin trazem ao mundo o sinal de seus estilos pessoais a cada obra. Os artistas são o exemplo maior de quem não cede quanto à sua marca diferencial.
O estudo desse ponto ímpar em uma pessoa levou analistas aos capítulos sobre honra e vergonha. Porque a passagem do singular pela civilização convoca à honra, a certeza de que a singularidade é um valor inalienável, ancorada sempre na vergonha de uma diferença que não se esconde.
Assim para Jacques Lacan. Sua proposta é envergonhar o analisando, mas não ante ao olhar social, que só poderia ser moralizador, culposo, conservador (como: “você não se envergonha de ter feito isso?”). Envergonhá-lo convocando-o a passar pelo mundo com sua diferença, honrar sua marca, a entusiasmar-se pela invenção.
Por isso, a vergonha com que lida a psicanálise de Lacan não é a da lembrança recôndita. Lacan não interpretava, em sua segunda clínica, como se fazia anteriormente, para revelar o que o recalque teria escondido: a memória do trauma, incrustada na realidade psíquica da pessoa. Não acreditava que houvessem mais nós a serem desatados, complexos a serem dissolvidos em busca da harmonia.
Quando a política se transformou – entre o tempo de Freud e o de Lacan – da repressão ao “é proibido proibir”, o inconsciente deixou de responder à análise do complexo de Édipo. Hoje, já disse, Freud não explica.
Nesse tempo desavergonhado que Lacan viu surgir, a vergonha é uma pérola para a psicanálise, celebrada como a marca da desarmonia que permite a invenção.
Por isso, já não se faz análise para resolver os impasses do desconhecido através de um saber. A análise permite uma maneira diferente de lidar com o que não sabemos.
À professora que enfrenta, na escola, o moralismo bruto dos pais, propus que lhes mostrasse como sustentar o silêncio necessário entre as gerações. A verdade não pode ser dita toda (Lacan). Assim, cessam as explicações do analista, têm limite as lições do pai.
Há um custo em sustentar esse silêncio necessário. É preciso suportar que a atitude de um pai é inexplicável. Mas deixá-la inexplicada gera transferência negativa, e esse custo os pais têm evitado como quem “salva a própria pele”.
A transferência positiva instiga à fala, reúne significantes. Então, há uma profusão de significados. É o efeito do amor: a união.
Freud contava com a transferência positiva daquele que se deitasse em seu divã. Mas ele indicou que haveria também a transferência negativa nas análises, e que era preciso suportá-la. Trata-se de não responder à queixa do analisando. Não lhe dizer se deve casar-se, sair de casa, mudar de país.
Ninguém deixa uma análise porque o analista não responde. Direi ainda mais: hoje, as pessoas só ficam em análise se os analistas não responderem. Os colegas que não toleram o inefável estão com os consultórios vazios.
Em análise está quem não têm expectativa de que o analista vá responder. A psicanálise é a única prática – não conheço outra – que permite a alguém mudar sua posição face ao que não tem nome, o real. Ela existe, enfim, porque há quem não responda.
Pais e educadores podem se valer dessa experiência da psicanálise, portanto. Há pais que só se consideram bons se forem amados pelos filhos. Não agüentam choro, atraso para o almoço ou o jantar, um carro raspado, ir dormir sem “boa noite”, o retorno só de madrugada. Sem suportar o inexplicável das atitudes, exigem reafirmação do amor a cada segundo. Os filhos ficam perdidos.
A melhor herança que um pai pode deixar ao filho não é seu ouro, não é uma viagem à Disneylândia, ou sequer o esforço para pagá-la. É o limite da compreensão, um arbitrário, o cultivo de um silêncio necessário entre as gerações. Freud chamava-o de castração.
Viver a incompreensão entre as gerações como um arbitrário é abandonar o causalismo, dispensar a justificação: as razões de cada atitude, afinal, são sempre questionáveis.
Quando cheguei à França pela primeira vez, muito jovem, procurei alguém com quem tive uma longa conversa sobre psicanálise. Pude fazer muitas perguntas, tive grandes explicações. Depois de duas horas, diante do meu fascínio, ele disse: “sabe... eu poderia explicar isso tudo da maneira contrária”.
Um momento assim é suficiente. Ele cala: a longa conversa, então, foi o silêncio da resposta. Bater no filho, ao contrário, embora possa acontecer sem palavras, não preserva qualquer silêncio. É a profusão de respostas, numa fala autoritária, impositiva, covarde.
O silêncio é duro, muito mais difícil que a surra, para um pai. É uma marca do não-saber no discurso, da vergonha.
É, por isso mesmo, a única chance do desejo, das soluções não reacionárias, não sintomáticas. É a chance de uma honra afirmada sobre a singularidade. A única chance para o entusiasmo da invenção.
São Paulo, 29 de novembro de 2002.
INTRODUÇÃO: O ENTUSIASMO DA INVENÇÃO
Desligar-se da sua maneira habitual de usar a palavra por uma nova ligação é o efeito de uma análise, como o apresentei no livro Da palavra ao gesto do analista: o “recontrato com a palavra” .
Num momento, há queixa e há esperança. Mas após uma análise a pessoa perde a possibilidade de se queixar. Perde, então, todas as esperanças. Caso pareça pessimista, não o é. A análise não gera conformismo, nem apatia. Basta perceber que o esperançoso, como o queixoso, está insatisfeito com o presente. A esperança também pode ser, paradoxalmente, o afeto dos deprimidos. Sem ela, tem vez a ação. Esta é a boa perspectiva.
Quem passa por uma análise não pode buscar alívio em mais uma interpretação. Não espera um sentido diferente, outra significação, a revelação de uma história que lhe esclareça sobre os obstáculos que tem enfrentado. Já não será alguém que espera remover obstáculos para ser feliz.
Então, seja um prelúdio à conferência de hoje a constatação de que a clínica do real tem como expressão prática a perda da esperança de um sentido último e, em conseqüência, o entusiasmo da invenção.
NOVOS SINTOMAS
O fracasso escolar, a toxicomania, as bulimias, as anorexias, a violência despropositada têm em comum a impossibilidade de serem explicados. Suas causas não são decifráveis por via alguma: da medicina, da psicologia, da pedagogia.
Mas a psicanálise, que não padece pelo desconhecimento das causas, toma esses sintomas em conjunto pela característica de estarem – todos - no curto-circuito da fala. Neles, há satisfação ao largo da cadeia associativa, a saber, fora dela, e não adianta, portanto, tentar tratá-los pela associação livre, pelo circuito da palavra.
Desses sintomas, hoje importa-nos especialmente a violência despropositada e, assim, surpresiva.
Muitos pais têm dormido com a porta do quarto trancada, apavorados com os filhos, desde os assassinatos recentes. Uma menina mata pai e mãe. Um menino degola a avó e a empregada. A imprensa interroga os analistas.
De costume, procura-se a causa. Logo, surgem respostas de um tom psiquiátrico-forense que recupera Lombroso, na busca de um modo de prever esses acontecimentos, detectar nas pessoas características que levam a essas tragédias.
Pelo absurdo disso, sugeri em uma revista, que os pais gostariam de colocar, nas portas dos seus quartos, detectores de mentais – como se fosse possível criar um instrumento de detecção do perigo nos filhos, nos amigos dos filhos... Instrumento mágico, em que um alarme identificaria o culpado previamente.
Não se trata de reconhecer nessa assassina dos pais um tipo lombrosiano, com gravíssima alteração cerebral, ou de conformar-se com a banalização do mal (Arendt) que tornaria a vida uma loteria, na qual suportar a aleatoriedade de nossas desgraças é tudo o que podemos fazer.
Enfrentamos, sim, uma doença grave, desconhecida pela psicopatologia tradicional. Na psicanálise foi por vezes declarado, sobre a menina, o diagnóstico de psicose. Não concordo, necessariamente. De um olhar médico, seria psicótica uma menina sem nenhum sinal elementar? Por outro lado, seria psicótica quem planeja friamente, por dois meses, a morte do pai e da mãe?
Há como enquadrá-la sim, de alguma maneira, nesse diagnóstico. Mas é melhor notarmos a novidade dessa doença, para chamá-la, talvez, esperando melhor inteligência, de nova histeria.
Conhecemos bem a velha histeria, fálica. No imaginário, seu gozo assume duas vertentes. De um lado, virá pela sedução seguida de recusa, daquela mulher que exagera nos atributos femininos e goza no fracasso da relação: “você acha que eu fiquei olhando para você à noite inteira?” “Não, eu estava olhando para a mesa atrás de você”. Não só os homens têm ejaculação precoce: a histérica fálica, pode nem precisar de um beijo para se satisfazer.
De outro lado, será o gozo da mulher exibicionista, poderosa, atuante. Ela faz da combatividade um valor evidente na maneira de falar, de vestir, de escolher seus namorados.
Dessa velha histeria nós aprendemos a tratar, aprendemos a rir dela, a sofrer por ela, a namorá-la. Então, surge a nova histeria, muito mais perigosa. Sintomaticamente, ela atenta contra todos os semblantes da civilização, da cultura, do amor, da amizade. É irrefreável nesse gozo. Na atualidade, em que a justiça e a psicanálise insistem em preservar modelos rígidos (edípicos, hierárquicos) enquanto o mundo lhes escapa, a nova histérica sabe que ela também escapa.
Ainda não sabemos lidar com o “vírus psíquico”, altamente contagioso, dessa nova histeria, como um dia não soubemos operar com o HIV. De início, sequer tínhamos um nome para ele.
Nomeei a nova histérica de “Medeia”. É aquela que não pára frente a nada, que vingou a traição de Jasão destruindo tudo o que tinham em comum. Ela matou seus filhos.
Estaríamos então em uma epidemia de medeias. O que tem contrapartida na tendência à depressão dos meninos, dos adolescentes e homens mais velhos (que já não voltam a ligar a um telefone, uma vez, ocupado).
Há risco social maior em uma Medeia que em um psicótico: está na intencionalidade. É o componente que, nessas conjecturas, não me permite confundi-los. É também o que escandaliza a imprensa.
Preocupam-me esses casos nos consultórios dos jovens terapeutas, no dia-a-dia da clínica. Recebi uma jovem em supervisão sobre o atendimento de uma menina de dezenove anos que, junto com as amigas, teria encontrado uma “maravilhosa” maneira de conseguir dinheiro para ir às compras no shopping center.
Sendo, da sua turma, aquela que tinha um namorado há mais tempo, diria a ele que estava grávida. Na opção do aborto, exigiria dele o dinheiro. Não pensava nas conseqüências. Indagada pela terapeuta, não lhe importava que o namorado guardasse o ressentimento do aborto, do filho perdido, do risco sofrido por sua namorada: “ele é meio chato e gosta de uns filmes esquisitos. Que se dane!”
Não são casos isolados. Tenho recebido muitos, em análise ou supervisão. É, sim, uma epidemia em movimento. Os colegas, como a sociedade e a imprensa, perguntam-se o que fazer.
UMA NOVA LÓGICA
A violência hoje é surpreendente, não o fora antes. O homem sempre soube onde a esperar. A questão latejante nesse tempo, portanto, não é a violência, mas a sua emergência surpreendente, de uma agressão fatal realizada, por exemplo, durante o sono e pelas mãos de um filho.
Têm sido duas as reações a essa violência: por um lado, o apelo ao imperativo das obrigações, que convoca novamente a palmatória como solução, ou o policiamento o mais militarizado; por outro, o recurso à religião, ao amor do pai, ao bom caminho da providência. São promessas reacionárias sobre a vitória do bem contra o mal, condicionadas às mais estritas ordens e penas.
Uma colega, responsável pela educação de crianças de classes média alta e alta, perguntava-me o que fazer quando essas crianças começaram a chegar na escola com marcas vermelhas no corpo, no rosto. Entrevistados os pais, disseram-lhe que atendiam à recomendação feita na mídia e nos livros por profissionais psi: a educação rígida seria preventiva.
São os “especialistas” da mídia – de notoriedade pública e desconsiderados nos próprios meios profissionais – que lançam uma solução à angústia dos pais neste momento: o reforço da autoridade, até fisicamente violenta, contra os filhos.
Aposta-se no retorno da censura, da ordem unida, da hierarquia, da disciplina militar, como se a abertura antes dada aos filhos tivesse sido excessiva, como se pais e filhos tivessem conversado demais. É uma das reações ou resistências à surpresa: uma moral expressa pela força, um apelo à ordem que exacerba o sentido de obrigação.
A moral da religião é a outra via pela qual se reage. A via que oferece acolhimento. Está, por exemplo, na leitura dos livros religiosos, em que a filha assassina busca a compreensão do que fez aos pais. Haveria de ter sido possuída por uma entidade que ela não identifica, e levada ao crime por uma causa que a excede em força.
No rádio, acompanhei o relato da namorada religiosa de um jogador de futebol descrente, até seu sucesso em convencê-lo de que machucou a perna e perdeu um contrato por não ter atendido ao apelo de Deus.
A sociedade atual procura resguardo do pavor através de pais que batem em filhos ou de namoradas que ensinam a via da conciliação com o pulso firme de uma providência transcendente. O resguardo do pavor é encontrado, portanto, no amor e na culpa. No amor idiota, identitário, autoritário. Um amor piegas.
Menninger, de uma linha terapêutica norte-americana conhecida aqui, propunha o tratamento nessa base: ganhar o afeto do paciente e tratá-lo pela culpa. Foi o que outro americano, Meeks, concebeu como uma “aliança terapêutica”, num livro de grande aceitação no Brasil (A frágil aliança): associar-se ao lado sadio de alguém para tratar seu lado mau.
A psicanálise não consente com o uso dessas ferramentas morais. Não sonha com o passado – da palmatória ou do amor ao Criador – repulsa o reacionarismo. Não traça uma linha asséptica entre o bem e o mal. Por isso, supera o vínculo afetivo organizado pela culpa.
Em 1948, quanto tratou a agressividade, Lacan propôs uma nova lógica como alternativa às lógicas morais da obrigação e da emoção . É uma terceira via, ética. Retomei sua proposta no capítulo sobre “o recontrato com a palavra”.
“Numa análise, porém, não será o bem que vencerá o mal ou o contrário, o mal que vencerá o bem. Existe uma nova lógica, a lógica do desejo fora dessa dicotomia (...) não se trata nem da moral do sensível, nem da moral do trabalho, mas da ética do desejo, sem nenhum parâmetro normativo para que possa ser chamada de moral”.
A HONRA
As lágrimas da assassina no enterro dos pais causaram furor. Como se fossem a extrema audácia na hipocrisia. Mas é precipitado reconhecer sua falsidade. Ela perdeu a mãe, seu namorado foi preso. Noutro momento, ela fora agente da tragédia. Então, tornou-se vítima. Vivemos um tempo em que o câmbio de emoções é rápido, em um mundo que perdeu a vergonha. As pessoas já não honram suas emoções.
O valor maior atual é, portanto, “salvar a própria pele”. O senso de luta pela sobrevivência, agora, justifica o desvario, a emoção fugaz, com a mais completa ausência de vergonha. Por isso, o reacionarismo tenta recuperar os valores e soluções do passado, esteios da ordem constante, o que não agrada a psicanálise.
Existe valor maior que “salvar a própria vida a qualquer preço”? Não para os covardes, os burocratas, os mutualistas, a assassina.
Encontrar valor maior que a própria pele é estar diante da segunda morte. Há duas formas de morrer: uma, biológica, e outra em que se perde algo maior, superior à biologia, que Lacan chamou de S1.
É algo que marca um sujeito em seu contato com a civilização: contato que funda sua vida no que ela é mais que nascer, crescer, reproduzir-se e morrer.
É algo grafitado no sujeito, singular a ele - que a biologia não reconhece - íntimo e que faz toda a diferença. É um ponto que, quando invadido, reage: “aí, não!” O limite de alguém. Houve um tempo em que os meninos de escola marcavam esse limite aos colegas dizendo: “ô cara, não apela!”
Essa marca é aquilo sem o quê a vida não vale a pena. Quem não a sufoca, sabe que viver é mais que “salvar a própria pele”, é ter algo pelo que vale perder a vida biológica. Lacan mostra isso às pessoas em análise, mas também não permite que elas confundam essa marca com um ideal (o que seria moralizante).
Respondo a uma colega da área de educação, quando insisto que a psicanálise não quer dos analisandos o sacrifício pelo dever, o heroísmo do ideal. Não quer criar novos Tiradentes, a serem imolados por um bem maior, coletivo. A marca, esse valor, é sempre pessoal. Sem essência estrutural. É puro grafite e é, em cada um, um grafite original.
Vinícius de Moraes cantou esse a mais, que distingue a paixão de cada um, ao lamentar por “quem passou por essa vida e não viveu”. Cada nascimento é uma chance. Quem cede e entra na vala do “todo mundo”, quem escolhe a trincheira e desmerece sua chance, não percebe que trincheira é túmulo.
Passar pela vida e viver é permitir a emergência do S1 na civilização, o que institui um estilo. Chico Buarque de Holanda tem um estilo. Van Gogh, Beethoven, Chopin trazem ao mundo o sinal de seus estilos pessoais a cada obra. Os artistas são o exemplo maior de quem não cede quanto à sua marca diferencial.
O estudo desse ponto ímpar em uma pessoa levou analistas aos capítulos sobre honra e vergonha. Porque a passagem do singular pela civilização convoca à honra, a certeza de que a singularidade é um valor inalienável, ancorada sempre na vergonha de uma diferença que não se esconde.
Assim para Jacques Lacan. Sua proposta é envergonhar o analisando, mas não ante ao olhar social, que só poderia ser moralizador, culposo, conservador (como: “você não se envergonha de ter feito isso?”). Envergonhá-lo convocando-o a passar pelo mundo com sua diferença, honrar sua marca, a entusiasmar-se pela invenção.
Por isso, a vergonha com que lida a psicanálise de Lacan não é a da lembrança recôndita. Lacan não interpretava, em sua segunda clínica, como se fazia anteriormente, para revelar o que o recalque teria escondido: a memória do trauma, incrustada na realidade psíquica da pessoa. Não acreditava que houvessem mais nós a serem desatados, complexos a serem dissolvidos em busca da harmonia.
Quando a política se transformou – entre o tempo de Freud e o de Lacan – da repressão ao “é proibido proibir”, o inconsciente deixou de responder à análise do complexo de Édipo. Hoje, já disse, Freud não explica.
Nesse tempo desavergonhado que Lacan viu surgir, a vergonha é uma pérola para a psicanálise, celebrada como a marca da desarmonia que permite a invenção.
Por isso, já não se faz análise para resolver os impasses do desconhecido através de um saber. A análise permite uma maneira diferente de lidar com o que não sabemos.
À professora que enfrenta, na escola, o moralismo bruto dos pais, propus que lhes mostrasse como sustentar o silêncio necessário entre as gerações. A verdade não pode ser dita toda (Lacan). Assim, cessam as explicações do analista, têm limite as lições do pai.
Há um custo em sustentar esse silêncio necessário. É preciso suportar que a atitude de um pai é inexplicável. Mas deixá-la inexplicada gera transferência negativa, e esse custo os pais têm evitado como quem “salva a própria pele”.
A transferência positiva instiga à fala, reúne significantes. Então, há uma profusão de significados. É o efeito do amor: a união.
Freud contava com a transferência positiva daquele que se deitasse em seu divã. Mas ele indicou que haveria também a transferência negativa nas análises, e que era preciso suportá-la. Trata-se de não responder à queixa do analisando. Não lhe dizer se deve casar-se, sair de casa, mudar de país.
Ninguém deixa uma análise porque o analista não responde. Direi ainda mais: hoje, as pessoas só ficam em análise se os analistas não responderem. Os colegas que não toleram o inefável estão com os consultórios vazios.
Em análise está quem não têm expectativa de que o analista vá responder. A psicanálise é a única prática – não conheço outra – que permite a alguém mudar sua posição face ao que não tem nome, o real. Ela existe, enfim, porque há quem não responda.
Pais e educadores podem se valer dessa experiência da psicanálise, portanto. Há pais que só se consideram bons se forem amados pelos filhos. Não agüentam choro, atraso para o almoço ou o jantar, um carro raspado, ir dormir sem “boa noite”, o retorno só de madrugada. Sem suportar o inexplicável das atitudes, exigem reafirmação do amor a cada segundo. Os filhos ficam perdidos.
A melhor herança que um pai pode deixar ao filho não é seu ouro, não é uma viagem à Disneylândia, ou sequer o esforço para pagá-la. É o limite da compreensão, um arbitrário, o cultivo de um silêncio necessário entre as gerações. Freud chamava-o de castração.
Viver a incompreensão entre as gerações como um arbitrário é abandonar o causalismo, dispensar a justificação: as razões de cada atitude, afinal, são sempre questionáveis.
Quando cheguei à França pela primeira vez, muito jovem, procurei alguém com quem tive uma longa conversa sobre psicanálise. Pude fazer muitas perguntas, tive grandes explicações. Depois de duas horas, diante do meu fascínio, ele disse: “sabe... eu poderia explicar isso tudo da maneira contrária”.
Um momento assim é suficiente. Ele cala: a longa conversa, então, foi o silêncio da resposta. Bater no filho, ao contrário, embora possa acontecer sem palavras, não preserva qualquer silêncio. É a profusão de respostas, numa fala autoritária, impositiva, covarde.
O silêncio é duro, muito mais difícil que a surra, para um pai. É uma marca do não-saber no discurso, da vergonha.
É, por isso mesmo, a única chance do desejo, das soluções não reacionárias, não sintomáticas. É a chance de uma honra afirmada sobre a singularidade. A única chance para o entusiasmo da invenção.
São Paulo, 29 de novembro de 2002.
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