quinta-feira, 12 de julho de 2012

A CONDICIÓN FEMININA
“O mal-entendido crônico”, “a louca união de habitantes de planetas mutuamente estranhos”, são
expressões que utiliza o autor para referir-se às tentativas de encontro entre os sexos: contudo
“muitas vezes sai bem”, mas no estilo de “O superagente 86”, que chega a cumprir com êxito a
missão apesar de haver entendido mal a ordem dada ”
Marcelo Barros (EOL)1.
Um documentário de televisão apresentava testemunhos de mulheres e de homens de
diversos lugares do mundo sobre o que cada um deles entendia por amor. Entre tantos relatos,
recordo um de uma mulher russa. Seu relato apresentou uma diferença notável com os demais,
porque em lugar de falar das delícias do amor e das sabedorias da tolerância, ela contou com singular
veemência como se zangava às vezes com seu companheiro: "Eu fico com raiva dele e começo a dizer
que é completamente irritante que estejamos casados. Somos muito diferentes e fica impossível nos
entendermos. Digo que não entendo como pudemos decidir estar juntos sendo tão diferentes. Temos
características diferentes, interesses diferentes, educações diferentes, viemos de famílias muito
diferentes, nossos estratos sociais, inclusive, são diferentes. E, de repente, eu faço um breve silêncio,
fico pensando por um instante, o olho e digo: Somos até de sexos diferentes! E nesse momento os
dois começam a rir".
Sexos diferentes. Que significa isso? Que estatuto tem essa diferença? O primeiro
julgamento que emitimos ante outro sujeito, disse Freud, é se se trata de uma mulher ou de um
homem. Lacan sustenta que o destino dos seres falantes é compartilhado entre homens e mulheres,
embora advirta que não sabemos o que são o homem e a mulher. A diferença que os separa, essa
espada que dorme entre ambos, traz consequências decisivas para o destino de cada um deles e para
o fruto de sua equívoca união. Seus efeitos ocupam essencialmente a experiência analítica como fator
perturbador em todo vínculo, incluindo quando a escolha de objeto é homossexual ou para quem
pretende não amar a nada mais que a si mesmo, como no delírio megalomaníaco. Até no ideal
andrógino e na reivindicação de múltiplas sexualidades alternativas, que mal escondem a promoção
do sexo único, porque se trata da pretensão narcisista de ser o falo. Ela se opõe a uma lei de
castração que determina a repartição dos modos de gozo – não de papéis, nem de gêneros – e que
impugna a ilusão de autodeterminação, tão cara ao capitalismo e à sociedade liberal.
O estatuto da diferença sexual não é da mesma natureza que todas as demais diferenças
que a mulher do relato enumerou. Não está fundada na natureza. O progressismo exige hoje
erradicar a palavra “sexo” e aludir a uma construção social que qualifica como “gênero”,
1
sexo traz problemas”, “A espada que dorme entre o homem e a mulher”. Site: http: //www.marcelobarros.com.ar.
Versão original Disponível em: http://www.pagina12.com.ar/diario/psicologia/9 -177303-2011-09-22.html sob os títulos “O
denominação que corta as amarras biológicas da diferença sexual para reconhecer sua linhagem de
contingência histórica. Concebida nestes termos, a diferença de gêneros seria similar às outras que
nossa mulher de Moscou enumerava em sua prolongada queixa, algo determinado pela educação e
pela política que sustentam ideais, dividem papéis e produzem subjetividades. O que seria esta
diferença se não é algo natural e tampouco uma construção aprendida e que poderíamos modificar
seguindo uma determinada política de educação?
Freud comprovou que mais além de todas as concepções científicas e filosóficas que
prevalecem em sua época, o povo tinha razão ao apoiar que os sonhos tinham um sentido que
poderia ser interpretado. Na questão sexual as coisas não são muito distintas. Se em certo sentido a
concepção psicanalítica do sexual se diferencia da ideia popular acerca da sexualidade, o saber
popular guarda também a intuição de que há algo errado entre os homens e as mulheres. Por mais
que se reciclem os contratos que visem mantê-los em boa ordem, juntos ou separados, o “sexo” traz
problemas.
A concepção da laranja tão redondinha deveria ser tomada como muito mais política e
filosófica do que popular. A política, toda política, inclusive a que queria decretar o amor livre, aspira
a um contrato e a uma convivência entre os sexos sob os termos variáveis de cada ideologia, mas
sempre se fundam no desconhecimento de uma realidade sexual contraria à dos desígnios da ordem
social. A política aspira a uma ordem determinada que se apresente como totalidade, inclusive ali
onde se pretende anárquica. Não é necessário ser psicanalista para entender do que se queixa nossa
protagonista quando fala do mal entendido crônico em que ela e seu homem estão emaranhados. A
louca união desses sexos diferentes aparece em uma dimensão cômica que se refere a uma
impossibilidade. De todas as diferenças que ela havia mencionado, é a última a que se revela
surpreendentemente como a causa subjacente do mal-estar depositado sobre as demais. Talvez
aqueles outros motivos de conflito fossem conciliáveis, não fora por esse último que é irredutível. A
diferença de sexos não é referida como a do feminino e do masculino de uma mesma espécie,
embora essa circunstância seja em parte certa. Tampouco como se fossem duas classes sociais, ou
duas condições civis em conflito, embora isso seja, em parte, certo. Diz como se referindo a espécies
distintas de habitante de planetas mutuamente estranhos.
A metáfora não é excessiva e nem caprichosa. O falo, tal como a psicanálise de orientação
lacaniana entende, nos recorda o “cone do silêncio” que aparecia em alguns episódios da série de TV
“O Superagente 86”. Era um dispositivo destinado a preservar a segurança das conversações entre o
espião e seu chefe. Mas o aparato funcionava infalivelmente errado e só servia para deixar os
protagonistas incomunicáveis. O sexo é como um telefone quebrado do qual não podemos nos
abster, nem sequer ali onde nos pensamos abstinentes. E o problema não é que está quebrado, senão
que funciona assim. Poderíamos dizer o mesmo do sintoma, e por isso a sexualidade humana tem um
caráter essencialmente sintomático.
A ideia de um aparelho que é usado compulsivamente para estabelecer uma relação que é
dificultada pela utilização do próprio aparelho nos remete a função do falo no sistema de significante
e sua incidência na relação entre homens e mulheres.
O falo determina a mulher como castrada, porque não o tem, embora isso careça do modo
específico pelo qual ela se vincula a ele. Uma mulher se vincula ao falo conflitivamente,
sintomaticamente, sob a forma do que não tem. Para o homem a relação com o falo não é menos
conflitiva; só que seu problema reside em tê-lo e não saber como dispor dele. O homem também se
encontra castrado no recurso ao falo porque, se está presente no corpo, está como algo separado de
seu sistema de saber. É isso ao que se refere Lacan com o trapaceiro termo “gozo absoluto”. Absoluto
não significa um gozo superlativo; absoluto quer dizer, como sua etimologia indica, que é algo
separado do sistema do sujeito. Ele o tem, mas não dispõe de um saber que permita fazer com isso.
E esta é a verdade da sexualidade. Reconhecemos em seus destinos, nos portos aos que nos
arrasta a nave do desejo, muito mais um tropeço que um resultado. Isto é verdade inclusive ali onde
o desenlace é feliz, onde o agente Smart chega a cumprir com êxito a missão apesar de haver
entendido mal a ordem dada. Lacan não deixa dizer que um homem ama uma mulher por acaso
que é o mesmo que dizer por erro, e que é também por esse acaso e por esse erro que “a espécie
humana” se reproduz. A coisa funciona. Muitas vezes vai bem e até parece que o telefone não está
quebrado e que nos entendemos. Mas o riso vem quando depois descobrimos que o que deu certo
foi um efeito, que não guardava nenhuma relação com o que pensávamos que era sua causa. É em
virtude de tudo isso que podemos adquirir a sentença
“apesar de tudo, navegava bem quando naufragou”. O falo é uma função média e não mediadora, por
ser o que está no meio do homem e da mulher sem assegurar uma relação entre eles, sendo mais a
garantia de sua não-relação, o obstáculo com o qual cada um se
do outro.
, oTunc bene navigavi cum naufragium feci,enfrenta a seu modo e que o aliena
* Texto extraído de
BARROS, Marcelo, La condición femenina. Buenos Aires: Grama editora, 2011.Tradução: Wilker França (IPB-Bahia)

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