domingo, 6 de outubro de 2013

O tratamento psicanalítico com crianças - de Fernanda Costa Moura

 
O tratamento psicanalítico com crianças
Fernanda Costa Moura

Desde seus primórdios, a psicanálise foi marcada pela experiência da psicanálise com crianças. Mas permanece um problema de difícil formalização determinar o que o psicanalista pode oferecer às crianças. A que devemos nos dedicar? Que direção privilegiar? Que elementos da prática é preciso reformular para criar as condições necessárias à psicanálise com crianças?

Freud considera a intervenção junto ao analisante de 5 anos chamado Hans (1909) como um tratamento psicanalítico. E um tratamento que se desenrola com o menino tomando lugar de sujeito, afetado e determinado pelos efeitos da palavra. Mesmo levando em conta as especificidades daquela experiência Freud não preconiza uma psicanálise “de crianças”, uma “psicanálise infantil”. Pelo contrário, Freud toma o menino Hans como alguém confrontado, de fato e de direito, a questões que a condição humana impõe e às quais responde com seus sintomas.

É verdade que o sujeito de que se trata na experiência analítica, sujeito do inconsciente, não se confunde com o individuo nem pode ser aquilatado em termos de etapas de desenvolvimento. Mas o que comparece na experiência clínica mostra que uma criança em análise não é um adulto em análise. De modo que mesmo se uma perspectiva estrutural nos permite ir além de uma visão simplesmente cronológica, seqüencial, desenvolvimentista do sujeito, esta constatação nos remete a uma dimensão temporal que exige dos analistas o trabalho de divisar em cada caso o que pode ser a singularidade da experiência analítica com aquela criança.

A prática clínica com crianças traz uma série de especificidades. Nomeadamente no que se refere à presença dos pais ou responsáveis no tratamento. Pois a criança, ao mesmo tempo em que se relaciona com o Outro – este Outro que é simbólico, para além daqueles que eventualmente o encarnam, entendido como o próprio campo da linguagem e suas leis –, tece esta relação fundamental e constitutiva submetida, em maior ou menor grau, à relação que estabelece com outros reais, como seus pais ou responsáveis. Há especificidades também quanto aos sintomas uma vez que as crianças ainda não estão expostas à experiência do desejo e da castração, - ou ao menos não se acham confrontados com uma experiência que teriam que “assumir em seu nome próprio” (Melman 1986) – e considerando-se que estes sintomas podem nodular questões da criança e de seus outros significativos. Por fim, especificidade em relação ao trabalho de simbolização, muitas vezes realizado através de desenhos, de jogos, brincadeiras, representações, em situações em que a fala pouco comparece ou de todo não comparece. Ao passo que outras crianças verbalizam bastante e realizam seu trabalho através de metáforas, histórias, etc. A todas estas questões e eventuais dificuldades o analista terá que responder, elaborando a cada vez as condições que permitem o trabalho. Porém a questão principal e mais delicada que a prática clínica com crianças parece impor ao psicanalista se refere à ética que conduz sua posição com relação à criança.

Em artigo no qual chama os psicanalistas ao trabalho, para darem ao campo da psicanálise com crianças “um método e uma ordem compatíveis com a psicanálise”, Charles Melman adverte que é importante precisar o que esperamos da criança, o que queremos dela, pois neste campo, mais ainda que em outros “a normalidade é uma questão de ética”(ibid.). Pergunta-se ele: dado que não podemos dar muito mais as crianças do que normas éticas, que podem variar muito em nossa cultura, haveria uma ética psicanalítica referente às crianças?

É uma pergunta realmente importante, decorrente de uma questão que não é exclusiva da psicanálise, mas concerne a todos e é passível de atingir cada adulto que se dirige a uma criança. Uma questão sobre nossa posição: a partir de que posição nos dirigimos a uma criança? O que queremos dela, o que temos a lhe dizer?

Para o psicanalista, naturalmente, isto tem implicação imediata na clínica, pois quando se concebe a normalidade como uma questão ética, deixa-se a esfera dos padrões de comportamentos e se enfrenta a questão da possibilidade ou não da condição subjetiva – uma vez que é somente no campo do sujeito que se pode conceber um posicionamento ético.

E aí justamente encontramos uma dificuldade que é da nossa cultura, do nosso tempo. Vivemos hoje em um mundo que, ao mesmo tempo em que se preocupa com a criança, tematiza este tempo da infância em função de ideais e expectativas com os quais a sobrecarregamos. Ideais que querem a infância como uma espécie de Éden, paraíso da juventude e da inocência a ser desfrutado imediata e plenamente; sem esforço, sem perda, sem trabalho do lado do sujeito. Este mundo, que já não estranhamos mais é o nosso mundo. Com seus costumes e organização próprios, com seu ideal prevalente de uma estrutura familiar conjugal, que faz da criança um foco aglutinador de cuidados, de expectativas e investimentos de toda sorte. Nem sempre foi assim, mas comumente hoje, vemos as coisas através deste prisma que coloca a criança como alguém de quem se deve primeiramente cuidar, a quem se deve proteger, é certo, mas também, num giro, num relance, poupar.

Nestas circunstancias, podem-se tomar duas direções éticas em relação à criança. Dedicando-se ao aprimoramento, por meio de todo tipo de avanços que se possa conseguir e com os melhores instrumentos disponíveis, das condições da infância com vistas ao cumprimento mais completo possível do ideal. Ou, num corte fundamental, acolhendo e dando voz às incidências que revelam que algo nesta pretensão não se realiza e escapa. Foi esta última posição que coube ao psicanalista: recolher, revelar, tirar as conseqüências da presença do corpo estranho que é o desejo no campo do sujeito – aquilo de nós que não sabemos, não podemos saber inteiramente, que derroga, que faz limite aos ideais.

A criança é para a psicanálise, ou ao menos foi para Freud, este ponto a partir do qual ele pôde iniciar o processo de desmontagem de nossas pretensões de autonomia e individualismo, que eram vigentes antes dele e ainda hoje pré-freudianas em seu fundamento. O que identificamos comumente como infantil, e eventualmente, a permanência da criança no homem, é talvez uma forma de tomar este resto que sempre escapa de nossas expectativas e intenções. Resto que queremos e tendemos a recalcar, que de maneira nenhuma se conforma ao ideal. Indo um pouco mais longe pode-se dizer que a criança é o limite daquilo que Freud encontrou nas análises, fosse qual fosse o momento cronológico-biográfico do analisante. Um limite, um significante, diríamos, que em psicanálise designa o lugar das primeiras identificações do sujeito para sua constituição.

Quando, portanto, a psicanálise faz falar o sujeito, tenha ele que idade for, é para levá-lo a falar da criança que ele foi e é. Não a criança ideal, mas a criança depositária de um desejo marcado pelas vicissitudes próprias dos encontros e desencontros, da incompletude, das insistências, da falta que ela experimenta na relação ao Outro. O psicanalista por sua vez, também no tratamento psicanalítico com crianças, não visa um bem fechado em si mesmo, absoluto, de antemão; nem tampouco o bom senso, a solução, o desenvolvimento adequado, a normatização – mesmo que estes interesses não estejam ausentes. A psicanálise não tem uma visão de mundo alternativa a propor, nenhuma panacéia que resolveria por um código geral os males do sujeito. O que sustenta a operação do analista com a criança é uma clínica efetiva, que aponta para o caso a caso e está concernida em atestar cada sujeito em sua singularidade e na singularidade das circunstancias em que ele se constitui e se manifesta. Numa análise o que está em jogo não é restituir a criança como ideal perfeito dos pais e adultos que demandam por ela, mas sim, uma possível realização do sujeito a partir da instancia do desejo, em toda sua complexidade.

Como se vê, a questão inicial não é tão simples e só pode ser enfrentada com fecundidade se aceitamos seu ponto de impossibilidade interna, vale dizer, estrutural. Este ponto de impossibilidade diz respeito a como um tratamento como a psicanálise, baseado fundamentalmente na questão de uma posição ética frente ao desejo, e que supõe portanto a responsabilidade e implicação dos sujeitos naquilo que sofrem; pode ser oferecido à criança que não é, não pode ser ainda, propriamente responsável. O interessante é que esta interrogação se apresenta geralmente acompanhada por outra, aparentemente independente, que diz respeito à questão de como a linguagem da criança pode franquear o aceso a esta prática, a esta experiência que é a psicanálise. Onde se trata de lidar com o real – o real enquanto impossível de suportar, que está no núcleo dos sintomas – através do simbólico configurado como dimensão da palavra. Em ambos os casos o que se discute é como a criança pode alcançar a experiência.

Lacan, ele mesmo, destacou a posição de objeto da criança como uma das suas possibilidades em relação ao Outro, introduzindo a idéia de que o primeiro estado do sujeito é ser falado no discurso do Outro. Outro que o reconhece e acolhe, que lhe dá lugar – ou não. Porém foi o mesmo Lacan quem apontou para o estatuto plenamente simbólico da relação da criança em sua relação com o Outro. Decidindo-se por um retorno a Freud, na contramão do desvio que ceifava da psicanálise a referência à função e ao campo da linguagem, Lacan destacou as “tentativas e tentações” de concepção de uma estruturação pré-verbal da experiência, provenientes da psicanálise com crianças, entre as armadilhas geradoras deste desvio (Lacan 1953:242). Mostrando inclusive que o interesse e o fascínio que alimentamos por vezes pela realidade supostamente “mais arcaica” do psiquismo infantil implicam um desconhecimento sintomático que nos isenta de responsabilidade com relação ao sujeito. Ele nos retira da nossa práxis com relação à criança e nos lança no ideal. Na tentação de tocar, pela interpretação, uma anterioridade pré-verbal que modelaria todas as relações do sujeito com o mundo. Nesta posição abrimos mão e excluímos a participação do Outro – do Outro da cultura e do Outro que somos, cada um, para a criança.

Por isso a psicanálise, ao contrário, vem, com Lacan afirmar na criança, por menor que seja, ainda antes do uso da palavra, a dimensão de uma experiência subjetiva por relação à linguagem uma vez que a criança experimenta o que nós – o mundo, a linguagem, cada um de nós – lhe dizemos, com ou sem palavras. Não há realidade pré-discursiva. Na efetividade de um tratamento o que a criança apresenta – ou seja, o que uma criança apresenta para a psicanálise e não do ponto de vista biológico ou sociológico – é sobretudo uma forma de estruturação e portanto de configuração clínica das questões fundamentais humanas, questões sobre a relação com o Outro e suas leis. Mais isso, que etapas de desenvolvimento.

O que escutamos quando escutamos uma criança – seja através da interação verbal, seja pelo desenho, pelo jogo – não é a infância ideal, intocada mas a criança que em seus sintomas testemunha o atravessamento simbólico que dá margem à constituição de um desejo com base no qual ela é concebida e tomada. Desejo que a retira da condição de infans para situá-la como sujeito dividido e enredado pela linguagem. Sujeito: não ente, coisa, objeto. Sujeito que é ele mesmo a um só tempo, tomada de posição e efeito das posições tomadas. Sujeito cujo único ser é seu ser de linguagem (Rocha 1996).

Por tudo isto considera-se a importância da posição de objeto da criança na estrutura, na família, na coletividade, mas não para fazer disso um elemento que dê conta de tudo o que está envolvido na chegada de cada criança a análise; não para dispensar o valor da palavra da criança. Dar a palavra – de que modo seja possível – para a criança, não contentar-se em falar sobre ela, em inventariar as suas circunstâncias e traumatismos; recusar tomar diante dela a posição modelar que incita à identificação. Eis alguns dos princípios da psicanálise para não se perder na justificação de uma psicanálise especial para crianças, sejam estas muito pequenas ou estejam marcadas pelos chamados casos graves ou difíceis. O que importa é em cada caso perceber como as questões fundamentais da existência se colocam para aquele sujeito em particular, ver como comparecem no campo da prática clínica com crianças todos os elementos fundamentais da clínica psicanalítica.

Enfim a responsabilidade que cabe ao psicanalista que dirige o tratamento de uma criança é também aquilo que ele pode oferecer: devolver à criança a função e o campo da palavra e da linguagem em sua vida e talvez na daqueles que se responsabilizam por ela. Nisto o desejo do analista é decisivo como ponto de Arquimedes a partir do qual sustentar, ao mesmo tempo, a força e a fragilidade da incidência da palavra e suas leis no campo do sujeito – fragilidade que nos convoca ao trabalho que é o desejo e força que permite dar lugar a um sujeito que não é mais um marionete capturado na onipotência do Outro.

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Referências Bibliográficas:

LACAN, J. (1953) "Fonction entre champ de la parole entre du language em psychanalyse”. Em: Écrits. Paris: Seuil, 1966.
MELMAN, C. (1986) “Sobre a infância do sintoma”. Em: Neurose infantil versus neurose da criança. Salvador: Agalma, 1997.
ROCHA, A.C.(1996) "O impossível do desejo e o desejo do impossível". Em: Ética, psicanálise e sua transmissão. Petrópolis: Vozes.

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